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Do seminário à Praça Vermelha: os primeiros dias de José Milhazes na URSS

É um dos mais reconhecidos jornalistas portugueses e foi um dos poucos a acompanhar a transição da União Soviética à Rússia atual. O Observador publica um excerto da autobiografia de José Milhazes.

Nasceu na Póvoa de Varzim a 2 de outubro de 1958. Estudou no seminário, só depois passou pelo liceu. Em 1977, decidiu mudar-se para Moscovo e quis saber mais sobre o comunismo.

Tornou-se correspondente em diferentes meios de comunicação portugueses (é, hoje, colaborador do Observador), mas tudo por acaso, depois de primeiros pedidos de crónicas ao português no país dos sovietes.

Este é o livro que conta a história de Milhazes, escrita pelo próprio. Começa na infância, termina no regresso a Portugal, 38 anos depois. O Observador publica um excerto do quarto capítulo, em que o autor lembra a chegada à URSS, a mudança para a nova casa, os colegas de curso, a adaptação à língua, à comida e à bebida.

“As Minhas Aventuras no País dos Sovietes”, de José Milhazes (Oficina do Livro)

“Aterrámos no Aeroporto Sheremetiev de Moscovo às 20 horas e 40 minutos (17 e 40 em Portugal continental) do dia 10 de Setembro de 1977. A primeira grande surpresa foi o controlo de passaportes e bagagens à porta do «Paraíso». Depois de um olhar demorado e severo (sorrisos era coisa que não existia nos rostos da guarda fronteiriça) para a nossa cara e documentos, carimbavam o passaporte, sendo a fase seguinte a revista das bagagens, ainda mais longa e meticulosa. Uma das estudantes portuguesas que viajavam comigo teve de abrir as malas. Fiquei tão espantado com o conteúdo – lençóis bordados, camisas de noite, pensos higiénicos, camisolas, camisas, vários pares de sapatos, etc., etc. –, que comentei se aquilo não se tratava de um enxoval para o casamento. Só mais tarde vim a saber que ela era sobrinha de uma dirigente da Associação Portugal-URSS que ia bem prevenida.

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Encontrei imediatamente razões para justificar vigilância tão apertada e enxoval tão rico. A primeira era a defesa contra as artimanhas do imperialismo norte-americano e da CIA e, a segunda, a proteção contra tiques pequeno-burgueses.

À nossa espera estava Luís Vieira, estudante madeirense que tinha chegado à URSS no ano anterior e já falava fluentemente russo. Depois de algumas horas de espera no aeroporto, fomos levados num velho autocarro para o Hotel Universitet, onde fiquei instalado num quarto em que já dormiam diversas pessoas. Deitei-me numa cama de campanha, pois era o único lugar disponível.

De manhã, levaram-me a uma consulta médica e fizeram-me análises clínicas, após o que recebi senhas para refeições. Quase tudo era novo e quase tudo feito pela primeira vez. Num refeitório estudantil começou a minha prova gastronómica da Rússia. Papas que nunca tinha visto na vida, tomates com natas, pepinos com a mesma coisa, kefir, uma bebida gelatinosa (kissel), chá, pão preto, etc. Fui para o pão branco, ovos e salsichas cozidos, e um copo de uma bebida que fazia tenuemente lembrar café. Ao almoço, um choque semelhante, mas mais intenso: sopa com natas, carne com molho também feito à base de natas. Resumindo, repeti os ovos cozidos e as salsichas.

"Um dos panamenses não parava de chorar com saudades dos pais e dos amigos. O peruano, Luis, passava a noite a tocar guitarra e a cantar canções românticas, pois não conseguia dormir, devido à diferença horária e às saudades da namorada que ficara na América Latina."

Os dias foram passando e os portugueses que viajaram comigo, distribuídos por Moscovo e outras cidades soviéticas. A jovem do enxoval, quando recebeu ordem para viajar para a cidade de Voronej, situada umas boas centenas de quilómetros a sul da capital, começou a chorar, mas de nada valeram as lágrimas. Nesse momento, mostrei-me disposto a ir no lugar dela, pois pensava que não havia qualquer diferença nos níveis de vida das várias cidades ou regiões da URSS; estava convencido de que já tinham sido ultrapassadas as diferenças entre o campo e a cidade, entre a província e a capital.

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– O que há de semelhante entre uma bomba atómica e o comunismo?
– Ambos põem rapidamente fim às diferenças entre o campo e a cidade.

Acabei por ficar sozinho no hotel e, quase uma semana depois de ter chegado à União Soviética, anunciaram-me que eu ia ficar em Moscovo, onde teria de frequentar a Faculdade Preparatória antes de ingressar na Faculdade de História da Universidade Estatal de Moscovo (Lomonossov), e que preparasse a mala para que me transportassem à residência estudantil.

Esta residência situava-se na Rua Chvernika, em homenagem a um dirigente estalinista, e tinha sido construída nos finais dos anos 60 do século xx como «Casa da Nova Vida» para solteiros e casais sem filhos. Era um projecto virado para a educação comunitária e comunista dos seus residentes. Os apartamentos eram constituídos por um ou dois quartos e uma casa de banho. Cada andar tinha apenas uma cozinha, onde estavam montados vários fogões eléctricos. Por outro lado, no edifício havia cafés e um enorme refeitório, uma sala de cinema e uma piscina coberta. Mas como a ideia não teve êxito entre os moscovitas, o edifício de 16 andares passou a ser uma das melhores residências estudantis da Universidade Estatal de Moscovo (Lomonossov).

Aí chegado, fui instalado num quarto onde já havia mais três alunos: um peruano e dois panamenses. O contacto entre nós foi fácil de estabelecer, pois não existia barreira linguística, mas as coisas começaram rapidamente a correr mal. Um dos panamenses não parava de chorar com saudades dos pais e dos amigos. O peruano, Luis, passava a noite a tocar guitarra e a cantar canções românticas, pois não conseguia dormir, devido à diferença horária e às saudades da namorada que ficara na América Latina.

Turma do seminário, 1974

Noutro quarto viviam dois portugueses, um dominicano e um grego, mas como as relações entre o sul-americano e os europeus se deterioraram até chegar a vias de facto, decidimos que eu me mudaria para o quarto deles e o dominicano para o meu lugar. Passei a viver com o Celso, que já conhecia, com o João e com o Andreias, o helénico. Porém, pouco tempo depois, veio juntar-se a nós mais um português, o António, que vivia num quarto com árabes e não se conseguiu habitar aos costumes e tradições deles, como, por exemplo, ouvir periodicamente orações. Por isso, ficámos a viver cinco num só quarto e, como aí não cabia o mesmo número de camas, tivemos de juntar duas para que nelas dormissem três.

Igualmente, conseguimos lugar neste quarto para um jovem M., que foi para a URSS estudar violino e enviado para Baku, capital do Azerbaijão, cidade onde estudara José Eduardo dos Santos, Presidente de Angola. O jovem recusou-se a sair de Moscovo, alegando que não teria condições para estudar em Baku. Além do resto, dessa cidade chegavam notícias de casos de racismo, xenofobia, etc. Devo sublinhar que vários portugueses pediram ao PCP que os transferissem para Moscovo por razões semelhantes. No caso do M., filho de um conhecido maestro e pianista português, Pires Jorge, representante do Partido Comunista na União Soviética, conseguiu-se resolver o problema da transferência, mas o M., cansado de tanto esperar e de tanta burocracia, decidiu regressar à pátria.

Entretanto, fomos levados em grupo à Loja Universal Pública (GUM), situada na Praça Vermelha de Moscovo, para receber alguma roupa e calçado: fatos de treino azuis de Inverno e Verão, um sobretudo semelhante àqueles que vestiam os dirigentes soviéticos na época fria, mas sem gola de pele, umas botas de fecho éclair e umas sapatilhas de ginástica. Para quem, como eu, praticamente não tinha levado roupa, aproximavam-se dias difíceis, pois a bolsa de estudo mensal de 80 rublos, equivalente ao salário mínimo nacional na União Soviética, mal dava para comer. De longe a longe, os meus pais ou o meu irmão Filipe enviavam-me, dentro de cartas, uma nota de dez dólares canadianos ou de dez libras esterlinas, que eram uma ajuda, mas insuficiente. Não davam para comprar roupas soviéticas, estivessem elas dentro ou fora de moda.

"A primeira dificuldade foi aprender a ler e, principalmente, a desenhar, sim, porque a fase da escrita vem depois, o alfabeto cirílico. A fonética era outro bico-de-obra para um jovem do Norte de Portugal como eu."

Foi o Celso que me salvou a mim e a alguns outros, ao emprestar-nos a sua própria roupa e calçado, pois ele fora o mais prevenido. As calças, as camisas e os casacos dele eram um «pouco» pequenos para mim e alguns outros, mas não havia outro remédio. Levaram-nos também a visitar a cidade de Moscovo e fiquei com muito boa impressão. A Praça Vermelha, o Kremlin, o Teatro Bolshoi, os gigantescos edifícios mandados construir por Estaline, as estações do metropolitano deslumbraram-me. Também me chamou a atenção o facto de no centro da capital circularem muito poucos automóveis e quase todos iguais. Espantou-me que algumas crianças nos abordassem para trocar emblemas por pastilhas elásticas, mas isso era interpretado, pelo menos por mim, como uma curiosidade infantil por algo inútil e supérfluo. Tinham acesso a tudo e procuravam «porcarias ocidentais».

Chegara, porém, a hora de iniciar os estudos na Faculdade Preparatória, onde, além de Língua Russa, estudávamos também História, Geografia e Literatura da União Soviética. Eu cheguei atrasado e por isso tive de acelerar o passo para alcançar os outros. Estes eram um português, um maliano, uma finlandesa, uma uruguaia, uma iraquiana, dois congoleses e uma laosiana. (Espero não me ter esquecido de ninguém…)

Davamo-nos bem e as professoras eram excelentes: muito atentas, pacientes, pois o nível de instrução dos vários estudantes era bem diferente e era preciso prepará-los para a Universidade Lomonossov ou, no pior dos casos, para uma escola superior na província russa ou noutra das 15 repúblicas da União Soviética.

Na Praça Vermelha, Moscovo, em 1979

A primeira dificuldade foi aprender a ler e, principalmente, a desenhar, sim, porque a fase da escrita vem depois, o alfabeto cirílico. A fonética era outro bico-de-obra para um jovem do Norte de Portugal como eu. O maior problema era trocar o «v» pelo «b», pois o primeiro existe no alfabeto cirílico e é representado com um «b» igual ao latino. O fonema latino «b» é equivalente ao «Б» russo. Ora bem, isso foi motivo de muitas risotas porque a língua russa também tem as suas «traições». Depois, eram os verbos de movimento e as declinações, que me deixavam a cabeça a andar à roda. Se eu não tinha sido bom estudante de francês ou inglês, como poderia sê-lo de russo?, perguntava-me eu, preocupado. Tinha receio de não dar conta do recado.

Folclore estudantil

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Chega um estudante africano da Faculdade Preparatória à beira da
professora e queixa-se:
– Não tenho podrujka [amiguinha, em russo].
– Podrujka? Mas isso não é comigo – respondeu a mestre.
Depois de esclarecer a situação, a direcção da escola constatou que o
estudante queria uma podujka (travesseira).

Mas a vantagem de se viver num país estrangeiro consiste em que, quer se queira quer não, tem de se aprender a língua local, nem que seja por uma questão de sobrevivência. Era necessário ir às lojas comprar alimentos, bebidas, às livrarias adquirir cadernos, lápis, livros, mas aconteciam sempre pequenos incidentes. Um dos mais frequentes: um russo aproximava-se de mim e começava a falar, eu respondia-lhe com uma frase decorada: «Ni ponimaiu!» (Não entendo!) Ele lançava-me um olhar desconfiado, pronunciava uma longa tirada em russo e retirava-se com um ar de poucos amigos. Mais tarde vim a saber a causa dessa reacção: eu pronunciava tão correctamente a frase «Ni ponimaiu!», que o russo pensava que eu estava a gozar com ele.

Rapidamente também aprendi que não era seguro falar português nos lugares públicos de Moscovo. Num dia de Inverno, regressava eu das aulas de ginástica com outros portugueses, quando, não sei se descontente com o frio, me dirigi para um dos assentos do eléctrico pronunciando-me em alta voz num português excessivamente vernáculo. Mal me sentei, ouvi uma voz feminina atrás de mim: «Você é português?» Olhei para trás e corei de vergonha, não sabia onde esconder-me. «Sim, somos, peço desculpa», balbuciei.

Tratava-se de uma senhora idosa, toda vestida de negro, com um ar aristocrático e refinado, como que saída de algum romance clássico, e falava um português irrepreensível. Contou-me que era soviética, mas que, na sua vida anterior, tinha sido estudante de Coimbra e que gostaria de visitar um dia essa cidade e Portugal.

A dimensão da vergonha inicialmente sentida correspondeu ao espanto provocado em nós pelas palavras da senhora de negro. Nessa altura, eu já era ateu e não podia acreditar em reencarnações, por isso pensei que se tratava de alguma provocação política. Saímos do eléctrico muito intrigados com este encontro, que serviu de aviso no que respeita ao carácter universal da língua de Camões.

Mais tarde vim a saber que aquela senhora tinha sido uma das primeiras professoras de português num instituto de línguas estrangeiras de Moscovo. Aliás, naquela altura, o ensino da nossa língua era muito popular na URSS devido ao facto de todas as ex-colónias portuguesas em África terem ficado na órbita soviética. Moscovo precisava de enviar centenas de conselheiros militares, tradutores e outros especialistas, principalmente para Angola. Como o dinheiro que aí ganhavam era muito mais do que os ordenados soviéticos, não faltavam candidatos. E o «internacionalismo proletário» não passava de propaganda para encobrir a política externa hegemónica do Kremlin. Pelo menos, não conheci nenhum soviético que tivesse ido para África ajudar os habitantes desse continente a construir o socialismo por amor à causa.

Foto de família, Tallinn, Estónia, 1986

Por essa razão, muitos estudantes soviéticos entravam em contacto connosco para praticar português, mas o problema é que nós também queríamos praticar russo. A solução era o meio termo.

À primeira vista, os soviéticos pareciam pessoas muito frias, carrancudas, até rígidas, o que causava uma má imagem, mas, depois de o gelo derreter, descobríamos, na maioria dos casos, como talvez aconteça em qualquer país, pessoas afáveis e hospitaleiras.

Um dos primeiros soviéticos que conheci foi o meu saudoso amigo e mestre Rachid Kaplanov. Tratava-se de um príncipe caucasiano, descendente do profeta Maomé por parte do pai. A mãe era judia. Eu não estava no grupo de portugueses que foi abordado por ele numa das ruas centrais de Moscovo quando ouviu falar a língua de Camões, mas, depois de nos conhecermos, desenvolvemos uma grande amizade que durou até à sua morte, em Novembro de 2007.

[…]

Quando recebemos a nossa primeira bolsa de estudo, juntámo-nos seis ou sete portugueses e, a fim de celebrar tal acontecimento, fomos, com o Rachid, jantar a um dos melhores e mais requintados restaurantes de Moscovo, situado no Hotel Nacional, a poucos metros da Praça Vermelha. Chegados à porta, deparámos com uma tabuleta escrita em russo que dizia «Svobodnikh mest niet» («Não há lugares disponíveis»), mas o nosso amigo Rachid explicou-nos que aquilo servia apenas para que os porteiros ganhassem dinheiro por fora ou os empregados de mesa trabalhassem menos e que tínhamos de ter uma ideia para superar aquela barreira. Entrámos para o restaurante através do hotel e constatámos que, realmente, as mesas e cadeiras disponíveis eram muitas.

"Acompanhados à viola pelo João, decidimos cantar canções revolucionárias como «Grândola, Vila Morena», «Avante», etc., mas as coisas correram muito mal. Estávamos muito desafinados e eu, enquanto solista, não conseguia afinar quando chegava à «Terra da fraternidade!»."

Foi ocasião para provar o que de melhor há na cozinha russa: caviar preto e vermelho, esturjão e salmão fumados, salada russa e, claro está, champanhe da Crimeia e vodca. Um banquete de reis, acompanhado de canções russas interpretadas por uma excelente solista, que estava acompanhada por tocadores exímios de balalaica, instrumento popular russo. Foi até as portas fecharem… A ressaca veio no dia seguinte, não tanto devido ao álcool, quanto à constatação de que tínhamos estoirado praticamente todo o dinheiro que nos permitiria comer durante um mês. Valeram-nos os empréstimos das jovens portuguesas que, além de economizarem, faziam dieta para não engordarem muito, o que era frequente entre as mulheres estrangeiras. Uma nossa colega dominicana, por exemplo, tinha vindo para Moscovo a fim de entrar na Escola de Bailado do Teatro Bolshoi, mas teve de mudar de curso, pois engordou mais de 20 quilos em poucos meses.

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– A nossa Constituição garante a liberdade de expressão – diz o professor.
– E também garante a liberdade a quem empregar essa expressão? – pergunta um dos alunos.

Todo esse ambiente festivo me encantava. Quando a Constituição da URSS foi aprovada, no dia 7 de Outubro, eu e alguns dos portugueses fomos ao quiosque comprar vários números do jornal Pravda, órgão do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), e selos de primeiro dia de circulação dedicados a esse acontecimento para enviar para os amigos em Portugal. Era uma forma de compartilhar com eles a nossa alegria. E que orgulho foi ver e ouvir em directo o discurso de Álvaro Cunhal, secretário-geral do PCP, na cerimónia solene dedicada ao 60.º aniversário do Grande Outubro, realizada no Kremlin! O discurso irradiava optimismo.

Por altura dessas comemorações, realizou-se na Escola Preparatória um concerto por alunos de vários países. Portugal esteve também representado. Acompanhados à viola pelo João, decidimos cantar canções revolucionárias como «Grândola, Vila Morena», «Avante», etc., mas as coisas correram muito mal. Estávamos muito desafinados e eu, enquanto solista, não conseguia afinar quando chegava à «Terra da fraternidade!». Talvez fosse por não estar habituado a actuar em palcos ou devido à acção funesta do tabaco nas cordas vocais. A plateia riu-se às gargalhadas, mas lá conseguimos chegar ao fim da nossa actuação. Uma autêntica vergonha…

A fazer traduções, Moscovo, 1984

Após o concerto, teve lugar um baile onde se encontravam, além de alunos e alunas estrangeiros, três jovens russas. Um dos portugueses começou a dançar com uma, o que irritou solenemente alguns dos estudantes árabes presentes que tinham o olho nelas. Eu e outro luso decidimos ir em ajuda do conterrâneo e pusemo-nos a dançar com as outras duas, coisa que desagradou ainda mais os nossos colegas. Frequentemente, este tipo de disputas terminava em pancada, mas nós conseguimos evitar isso ao não responder a provocações.

Noutra ocasião, tínhamos acabado de receber a bolsa e decidimos tirar a barriga da fome indo comprar massa, almôndegas e pasta de tomate. O prato ficou apetitoso e comemos tanto, que começámos a suar (o aquecimento central da residência já estava ligado pois tinha começado o longo Inverno), tirámos as camisas e desapertámos as calças para estar mais à vontade. Inesperadamente, uma jovem libanesa entrou no quarto sem pedir licença e solicitou a um de nós que lhe emprestasse o manual de Biologia para se preparar para o exame. Sem que lhe dessem autorização, ela correu para uma secretária, pegou no livro e fugiu quarto fora. O nosso futuro biólogo, sem camisa e com as mãos a segurar as calças, foi atrás dela para recuperar o manual. No momento em que ele a apanhava pelas costas e lhe tirava o livro das mãos, passava pelo local um sírio. O português regressou ao quarto com o troféu, mas seguido pelo árabe enfurecido, que imaginou o pior. Valeu-nos o facto de no nosso quarto estarem várias portuguesas que começaram a rir-se histericamente ao acompanhar todo o espectáculo. O sírio ficou tão embaraçado, que decidiu retirar-se sem defender a honra da jovem muçulmana.

Alguns dias depois do baile na escola, fomos convidados por uma das jovens russas a visitar o apartamento dos pais dela, que, nessa altura, estavam fora de Moscovo. O que mais me impressionou nelas foi o seu apolitismo quase total, limitando-se a comentários cínicos sobre a política da direcção soviética. Interessavam-se apenas por roupas, cosméticos, música e outros produtos ocidentais, embora frequentassem escolas de ensino superior.

"Fomos ver um filme soviético que acabara de chegar às salas de cinema de Moscovo e prometia ser um êxito: 'Romance em Serviço'. Trata-se de uma brilhante e cáustica comédia soviética, mas, na altura, o meu russo não me permitiu compreender essa obra do realizador soviético Eldar Riazanov. E o meu primeiro romance com uma jovem russa também ficou por ali."

Bebemos umas cervejas alemãs e cigarros americanos, que tínhamos comprado numa Berioska (rede de lojas interditas a russos onde se comercializava em moedas convertíveis e apenas com estrangeiros), ouvimos e dançámos ao som de Joe Dassin, que era a única cassete de música estrangeira que as estudantes tinham.

Numa outra vez, fomos ver um filme soviético que acabara de chegar às salas de cinema de Moscovo e prometia ser um êxito: ‘Romance em Serviço’. Trata-se de uma brilhante e cáustica comédia soviética, mas, na altura, o meu russo não me permitiu compreender essa obra do realizador soviético Eldar Riazanov. E o meu primeiro romance com uma jovem russa também ficou por ali.

Na Escola Preparatória os estudos continuavam dentro da normalidade. A pouco e pouco, fui começando a falar e a compreender a língua russa, o que me permitiu um cada vez maior número e variedade de contactos humanos. Alguns um tanto estranhos. No Inverno, a professora de russo perguntou-me a mim e a outro português da escola se podíamos ir jantar com um amigo dela que se interessava pela língua portuguesa e gostaria de nos conhecer. Aceitámos o convite de boa vontade e ele levou-nos a um bom restaurante de Moscovo onde era servida excelente cozinha russa e caucasiana. A refeição foi bem regada com vinho, champagne e vodca, conversámos muito, o russo fez-nos bastantes perguntas e, no fim, prometeu voltar a entrar em contacto connosco. Suponho que se tratou de um agente do Comité de Segurança do Estado (KGB) da URSS, que quis verificar se poderíamos ser úteis à causa da «defesa do Estado socialista», mas, pelo menos comigo, ele nunca mais entrou em contacto.”

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