Uma pequena equipa secreta de técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI) trabalhou, fora das instalações da sede do FMI, em Washington, para gizar um plano de reestruturação direta da dívida grega. Foi na primavera de 2010, nos meses que antecederam o primeiro resgate a Atenas, e participaram nesses trabalhos representantes dos governos da Alemanha e de França, revela um trabalho académico de um antigo jornalista do Washington Post e do The Wall Street Journal, Paul Blustein, que está a escrever um livro sobre o papel do FMI na crise da zona euro. A possibilidade de um perdão da dívida logo em 2010 esbarrou, porém, na intransigência de um francês tranquilo mas dado a ataques de fúria quando em causa está o futuro da zona euro.
“Laid Low: The IMF, the Euro Zone and the First Rescue of Greece” baseia-se em entrevistas com “dezenas de participantes chave” e na análise de documentos do FMI. Conta a história das negociações secretas na primavera de 2010, de tal modo clandestinas que “quem esteve envolvido expressa surpresa quando lhes falei nelas”, diz o antigo jornalista do The Washington Post. São escassos os detalhes sobre os modelos em que se trabalhou, tanto que um participante com quem Paul Blustein tentou falar respondeu-lhe que ‘esse é um tema do qual não falarei com ninguém enquanto for vivo‘.
Mas os trabalhos existiram, garante o autor norte-americano, a partir de relatos de fontes tanto do lado do FMI como da Europa. “Com o encorajamento de Strauss-Kahn, técnicos de topo do FMI encontraram-se num hotel em Washington para demonstrar porque é que uma reestruturação da dívida grega seria necessária muito em breve”, escreve o antigo jornalista, que agora se dedica à investigação académica pelo Centre for International Governance Innovation (CIGI), com sede no Canadá.
A crónica de Paul Blustein começa com um pequeno-almoço na manhã de 24 de abril de 2010, em Washington, em que além de George Papaconstantinou e Dominique Strauss-Kahn, o diretor-geral do FMI, estavam presentes o comissário europeu Olli Rehn e o presidente do Banco Central Europeu (BCE), Jean-Claude Trichet. O encontro aconteceu poucos dias antes do acordo que daria forma ao primeiro resgate à Grécia e o ministro grego, em entrevista a Paul Blustein, recorda a reunião como “muito boa, já que os três – e eu próprio – eram favoráveis a um resgate o mais rapidamente possível”. Mas ficou claro, escreve Blustein, que não haveria reestruturação da dívida da Grécia, algo que vários economistas viam como inevitável.
“George, não toques nesse assunto“, foi dito a Papaconstantinou, segundo o próprio, por um dos homens que estavam sentados à mesa. “Eu não era parvo. Nunca teria falado desse tema de forma unilateral e, depois, ser-me dito, através da imprensa, que isso [a reestruturação da dívida] não era uma opção possível e ter uma debandada de investidores em 24 horas. Era uma situação muito delicada”, recorda George Papaconstantinou. O que nem Papaconstantinou, nem Trichet, nem Olli Rehn sabiam (apesar de haver membros dos governos de Berlim e Paris envolvidos) é que o FMI, liderado por Dominique Strauss-Kahn, já tinha feito um trabalho de preparação de como se poderia fazer uma reestruturação da dívida pública da Grécia.
Os trabalhos secretos no hotel de Washington acabariam por não dar quaisquer frutos. Apesar de, como escreve o autor de “Laid Low”, conterem o modelo que viria a ser utilizado quase dois anos mais tarde, com a troca voluntária de títulos de dívida que reduziu para menos de metade o valor da dívida da Grécia que estava nas mãos dos investidores privados. De qualquer forma, Blustein escreve que esta negociação secreta teve como objetivo avaliar que tipo de apoio existiria do lado do governo de França e da Alemanha.
É certo que a Alemanha veria com horror safar a dívida da Grécia, mas também via com algum horror a desresponsabilização dos investidores privados que financiaram os crescentes défices gregos, lê-se no trabalho de Blustein. Pelo que seria um erro achar que a Alemanha foi a principal opositora a um perdão da dívida à Grécia, diz o autor norte-americano. Bem mais irredutível foi o BCE e o seu presidente, Jean-Claude Trichet.
“Ainda que seja uma pessoa cortês e educada, Trichet não se inibe em expressar a sua fúria, às vezes em decibéis elevados, especialmente quando ouve opiniões que considera uma ameaça para os princípios e as instituições que passou a vida a construir e a defender”, escreve Paul Blustein. “E o envolvimento do FMI no resgate a um país da zona euro, acreditava Trichet, criava esse perigo”. Porquê? Porque em alguns quadrantes da Europa, algumas pessoas defendiam que procurar a ajuda do FMI era equivalente a admitir que as instituições europeias eram demasiado fracas e ineficazes para suportar a experiência da união monetária. “Os empréstimos do FMI eram vistos, por algumas destas pessoas, como algo para os países pobres e emergentes, não para membros de uma união monetária cuja riqueza é comparável à dos EUA”, aponta Paul Blustein.
Jean-Claude Trichet, como presidente do BCE e fiel aos princípios que nortearam a criação do banco central, tinha uma justificação adicional para não querer o envolvimento do FMI. É que o francês acreditava que se os governos europeus vissem a Grécia a ser resgatada pelo FMI isso iria esvaziar o empenho dos governos europeus no trabalho de recuperação da crise e de repensar a união monetária como tinha de ser feito. Além disso, é comum o FMI interferir na política monetária dos países onde intervém. Como iria o BCE reagir, na infinita independência que idealiza, ver uma instituição externa impor medidas de política monetária – como subir ou descer as taxas de juro – na sua área de jurisdição?
Jean-Claude Trichet temia, também, um “momento Lehman” na zona euro se houvesse uma reestruturação da dívida grega, com o colapso em catadupa de instituições financeiras em vários países, numa altura em que ainda estava no início a adaptação às regras mais exigentes de capitalização. Numa reunião do Conselho de Governadores do BCE na primavera de 2010, um dos membros do Conselho Executivo, o economista Jürgen Stark, sugeriu que a dívida grega arriscava cair numa dinâmica explosiva e chegar a níveis desconfortavelmente elevados. Implícito ficava, assim, que uma reestruturação poderia ser necessária. Perante essa sugestão, Jean-Claude Trichet “explodiu”, conta Paul Blustein.
“Estamos numa união económica e monetária, e não haverá reestruturação da dívida”, disse o presidente do BCE, “a gritar”, conta a fonte de Blustein. A ideia caiu, assim, por terra. Porque o BCE desempenharia sempre, em caso de reestruturação, um papel fundamental de garantia da cedência de liquidez necessária e, se possível, na garantia de que seria uma decisão excecional e que o banco central iria lutar com todos os seus meios contra a especulação contra outros países. Sem o apoio de Jean-Claude Trichet, a ideia perdeu-se. Ou melhor, adiou-se até ao início de 2012.
Dominique Strauss-Kahn é personagem central nesta crónica e foi um dos intervenientes entrevistados por Blustein, antigo jornalista. Strauss-Kahn foi acusado, na altura, de estar a assumir uma posição de protagonismo na crise para lançar a sua candidatura presidencial em França. Mas “as minhas conclusões sugerem claramente que a motivação de Strauss-Kahn era o desejo de fazer aquilo que acreditava ser o melhor para a instituição que liderava”, isto apesar do claro “conflito de interesses” em que operava.
O francês lutou, “arduamente”, nas palavras do próprio, por um papel importante no resgate à Grécia e no desenho daquilo que viria a ser a troika. É que na primeira metade da década de 2000, com as economias globais em alta e os mercados a recuperar do crash das dotcom, o FMI entrou numa crise existencial, com a revista The Economist a escrever em 2006 que ao FMI não restava “nem um gato para salvar do topo de uma árvore”. Muitas pessoas estavam a questionar a relevância da organização nessa altura, pelo que passar ao lado do combate à crise na Europa poderia ser uma certidão de óbito para o FMI, escreve Paul Blustein.
Para Angela Merkel, era essencial o envolvimento do FMI neste processo. Já o francês Nicolas Sarkozy defendeu, a certa altura, que o FMI não tivesse qualquer papel no processo que se seguiria. Meio termo: o FMI acabaria por ficar relegado a um papel de junior nas negociações, o que “obrigou a algum ajustamento mental por parte do fundo”, nota Blustein, lembrando que o FMI está habituado a estar no controlo dos acontecimentos. Prestou aconselhamento técnico e, claro, dinheiro: um terço dos resgates iniciais (agora contribui com um décimo) mas até para entrar neste processo acabou por quebrar uma das suas regras principais, a garantia de que nunca interviria num Estado sem que houvesse uma “probabilidade elevada” de que a dívida poderia ser colocada numa rota sustentável. Não existia essa garantia no caso da Grécia, o que viria ser reconhecido num mea culpa do FMI em 2013.
Mas essa não foi a única regra que foi quebrada. Ao participar no resgate à Grécia sem exigir uma reestruturação da dívida de imediato, Paul Blustein defende que o FMI violou também a “regra da Argentina“, ou seja, não hesitar quando se acredita que a reestruturação pode ser inevitável. E não esperar que o ónus da dívida saia dos ombros dos investidores privados e passe para os ombros dos contribuintes. “É absolutamente óbvio que a reestruturação da dívida privada surgiu demasiado tarde”, conclui Paul Bluestein, que escreve este trabalho científico numa altura em que, apesar de a Grécia ter beneficiado em 2012 da maior reestruturação de dívida pública da História mundial, o país volta a estar em crise e continua sem conhecer o seu destino.