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Já nasceu (mas não sabemos se é menino ou menina)

Há crianças que nascem sem sexo definido. Eram operadas à nascença, numa decisão de médicos e pais, mas o Governo quer proibir estas cirurgias e esperar para que a criança defina o seu género.

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Estava tudo planeado para o nascimento de Elsa. Era a primeira filha de Joaquim e Carlota e foi tudo preparado ao milímetro durante os nove meses de gravidez. As paredes do quarto que iria receber a recém-nascida foram cuidadosamente pintadas de cor de rosa por Joaquim, num fim de semana frio de inverno, para dar tempo a que o cheiro a tinta desaparecesse até à primavera.

O berço foi oferecido pelas futuras tias, mas foi ao casal a quem coube a tarefa de o montar. Longas horas que não foram em vão: foi aí que decidiram batizar a filha com o nome de Elsa, em memória de uma das avós de Carlota — mulher com garra e sem papas na língua.

Ainda faltava um mês para a data prevista para o nascimento e Carlota já tinha separado as três primeiras mudas de roupa para a bebé: cada uma delas num saco de pano, também cor de rosa, bordados com o número correspondente a cada um dos dias previstos que iria passar no hospital.

Foi por isso tranquilamente que o casal se dirigiu a uma maternidade em Lisboa, quando Carlota começou com as primeiras contrações. Horas depois, foi encaminhada para a sala de partos. Com a emoção e o stress do momento, Carlota nem sequer se apercebeu que os médicos não disseram a frase clássica: “Aqui tem a sua menina!”. Por uma razão: não conseguiam ter a certeza se se tratava de uma menina ou de um menino.

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Elsa nasceu com ambiguidade sexual. A bebé apresentava um clítoris aumentado, uns grandes lábios parcialmente unidos e a uretra e a vagina a coincidir no mesmo canal, em vez de estarem separadas.

Seguiram-se uma série de exames — a nível genético, imagiológico e hormonal — para se perceber o que se passava ao certo com a recém-nascida. Tudo apontava para uma menina: geneticamente era uma mulher (cariótipo 46XX), tinha ovários e útero. As alterações hormonais apontavam para uma hiperplasia congénita da supra-renal — os bebés com estas alterações podem apresentar desde um clítoris aumentado a órgãos genitais de aspeto masculino, mas os órgãos internos são femininos.

É um nome complexo para designar uma das 40 variações de anomalias de diferenciação sexual ou alterações do desenvolvimento sexual (em inglês, Disorders of Sexual Differentiations ou Disorders of Sexual Development – DSD), que podem ser diagnosticadas durante a gestação, no nascimento do bebé, durante a infância ou apenas quando a criança chega à puberdade, explica a geneticista Ana Medeira.

As alterações do desenvolvimento sexual podem ser diagnosticadas durante a gestação, no nascimento do bebé, durante a infância ou apenas quando a criança chega à puberdade.

E revelam-se de diferentes formas: à nascença, os bebés podem ter genitais de aparência masculinos, mas internamente têm útero e ovários (hiperplasia congénita da supra-renal). Outra hipótese é as crianças nascerem com órgãos genitais femininos e só se descobrir que são geneticamente do sexo masculino quando surge uma massa numa virilha, suspeita de se tratar de uma hérnia, que acaba por se revelar um testículo; ou quando chegam à adolescência e não menstruam, porque não têm ovários e útero (insensibilidade completa aos androgénios – CAIS). Há ainda os casos em que os bebés nascem com pénis e testículos, mas muito pouco desenvolvidos (insensibilidade parcial aos androgénios – PAIS).

Talvez o caso mais conhecido destas alterações seja o das “Guevedoces” (“pénis aos 12 [anos]”, traduzido literalmente): crianças de uma pequena comunidade na República Dominicana que nascem com o que aparentam ser genitais externos femininos, mas os genitais internos são masculinos. São registadas e educadas como meninas e depois, na puberdade, cresce um pénis e os testículos intra abdominais descem. São crianças que, na sua maioria, nunca se identificaram com o género feminino e que acabam por fazer a transição para o género masculino.

As pessoas com este tipo de anomalias são por norma designadas de intersexo. Isto é, pessoas que nascem com características sexuais que não se encaixam nos conceitos típicos de corpos masculinos e femininos, lê-se num documento do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos — nome que a comunidade médica deixou de utilizar por ser considerado preconceituoso.

Um distúrbio raro, mas não assim tanto quanto se possa imaginar: afeta cerca de 0,05% a 1,7% da população mundial. Mais ou menos a mesma percentagem de pessoas ruivas existentes em todo o mundo. Em Portugal não é possível estimar um número concreto destas alterações, uma vez que não existe uma base de dados comum a todos os hospitais.

O RENAC – Registo Nacional de Anomalias e o Departamento de Epidemiologia do INSA foram reportados seis casos de bebés com ambiguidade sexual em 2015 em Portugal. A nível europeu — dados do EUROCAT — foram registados 24 bebés.

No caso da hiperplasia congénita da supra-renal — a causa mais frequente de ambiguidade neonatal –, a Orphanet, portal europeu que divulga informações sobre doenças raras, dá conta que a prevalência é de 1/14,000. A Raríssimas (Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras) tem conhecimento de 15 casos em Portugal.

O caso de Elsa é um dos mais de 100 casos de alterações do desenvolvimento sexual — em grande parte tratam-se de doentes oriundos de PALOP — acompanhado pelo Grupo de Estudo de Doenças de Desenvolvimento Sexual do Centro Hospitalar de Lisboa Central (CHLC). Uma equipa multidisciplinar composta por uma cirurgiã pediátrica, Fátima Alves, uma endocrinologista, Lurdes Lopes, uma geneticista, Teresa Kay, uma psicóloga, Vera Reimão Pinto, e uma ginecologista, Filomena de Sousa.

São estas especialistas que são chamadas quando surge uma criança com uma aparente alteração do desenvolvimento sexual, e a quem é dada a tarefa de diagnosticar estes doentes. Numa primeira fase são observados e depois submetidos a uma série de exames. A Elsa, por exemplo, foi feito um estudo genético para se determinar se era menino ou menina (cariótipo XX ou XY), uma ecografia abdominal e pélvica para analisar os genitais internos, e ainda um doseamento hormonal para avaliar os níveis de hormonas em circulação. Diagnóstico: hiperplasia da supra-renal.

Após a conclusão do estudo, a situação é apresentada aos pais, bem como as sugestões de tratamento. É aos progenitores que cabe a (difícil) decisão final. “Estabelece-se um plano para o doente após observação e investigação. Depois, perante um diagnóstico — que é muitas vezes 100% fidedigno, como a hiperplasia congénita da supra-real — apresentamos as nossas opções”, refere a cirurgiã Fátima Alves. Um processo que pode demorar entre duas semanas a um mês (excluindo a cirurgia).

“Estabelece-se um plano para o doente após observação e investigação. Depois, perante um diagnóstico apresentamos as nossas opções”, explica Fátima Alves, cirurgiã do Hospital D. Estefânia.

No caso de Elsa, a bebé começou a fazer uma medicação para regular o funcionamento da glândula supra-renal, mas também para impedir que ficasse com características masculinas. Aos 12 meses foi submetida a uma cirurgia de correção: o tamanho do clítoris foi reduzido, o feixe vasculonervoso foi conservado para manter a sensibilidade, os componentes do pénis responsáveis pela ereção (corpos cavernosos) foram separados e colocados sob os grandes lábios, e a uretra e a vagina foram separadas para que os genitais externos ficassem com um aspeto feminino — uma intervenção apelidada de genitoplastia feminizante com conservação dos corpos cavernosos.

“Esta correção permite-nos, caso haja disforia de género [se mais tarde a criança não se identificar com o sexo de nascença ou atribuído] — o que acontece em 5% dos casos –, reverter a cirurgia se essa for a escolha futura do doente. Não se fazem mutilações”, garante Fátima Alves. “É uma cirurgia com muitos passos e delicada. É preciso que a vagina que vai ser reconstruída permita a função sexual no futuro”, acrescenta a endocrinologista Lurdes Lopes.

Cirurgias só com autodeterminação de género

Austrália e em Malta

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Em 2013, a Austrália criou uma lei que, entre outras medidas, proíbe a discriminação de indivíduos com base na intersexualidade.

Malta foi o primeiro país, em 2015, a criar uma lei (Lei da Identidade de Género, Expressão de Género e Características Sexuais) que proíbe cirurgias e tratamentos às características sexuais de menores sem o seu consentimento informado. A mesma lei proíbe também a discriminação tendo por base as características sexuais.

Mas o Governo quer alterar estes procedimentos. Na passada quinta-feira, foi aprovado em Conselho de Ministros um projeto de lei que proíbe a realização cirurgias corretivas, bem como de tratamentos que impliquem alterações ao nível do corpo ou de características sexuais, até que haja uma autodeterminação de género por parte da criança.

“O diploma refere que não devem ser realizadas cirurgias em crianças intersexo, a não ser por razões de saúde clínica, e só devem ser feitas após a identidade de género estar expressa”, afirmou a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Catarina Marcelino, ao Observador.

Quando a criança manifestar a sua identidade de género, os tratamentos e as cirurgias serão feitas mediante consentimento do próprio e através dos pais ou representantes legais. “O que marca esta legislação é que fica definido quais são os procedimentos a tomar“.

"O que marca esta legislação é que fica definido quais são os procedimentos a tomar", afirmou a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Catarina Marcelino, ao Observador.

Este projeto de lei, que terá ainda de ir a votos no Parlamento, é uma maneira de regulamentar estas práticas, que se irão aplicar também às crianças de países africanos que venham a Portugal para ser tratadas. Aliás, o Ministério da Saúde irá elaborar “um protocolo de intervenção” para se definir como abordar estes casos. “É do superior interesse da criança definir regras“, refere a governante.

Apesar da ambiguidade genital, os pais continuam a registar o bebé como tem sido feito até hoje — têm de optar pelo género masculino ou feminino. Mais tarde, e se assim o desejar, a criança poderá alterar o género que lhe foi atribuído. Caso este diploma seja aprovado, poderá fazê-lo a partir dos 16 anos e sem precisar de um relatório médico “como qualquer outra criança cuja identidade de género não se identifique com sexo”, esclarece Catarina Marcelino — a atual legislação só o permite fazê-lo aos 18 e com autorização médica.

ONU contra cirurgias "desnecessárias"

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O documento do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) refere que se tornou prática comum submeter as crianças com alterações no desenvolvimento sexual a “cirurgias e outros procedimentos médicos desnecessários” com o intuito de enquadrá-las nos “estereótipos binários de género”.

“Estes procedimentos, regularmente feitos sem o consentimento informado, completo e livre da pessoa em causa — que é frequentemente demasiado novo para fazer parte do processo de decisão –, pode violar os seus direitos à integridade física, livres de torturas e tratamentos adversos e viver sem serem sujeitos a práticas dolorosas”, lê-se também no texto.

O ACNUDH incentiva ainda os Governos a proibir a “discriminação”, tendo por base as características das pessoas intersexo, nas áreas da saúde, educação, emprego, entre outras.

O projeto de lei prevê ainda que sejam adotados procedimentos para que, em ambiente escolar, as crianças “possam adotar o nome com o qual se identificam na sua expressão de género”.

Este projeto de lei vai ao encontro de recomendações de instituições internacionais (ver caixas ao longo do texto), mas também nacionais.

A possibilidade de autodeterminação das crianças intersexo e a criação de regras para a comunidade médica eram algumas das reivindicações de Santiago D’Almeida Ferreira, o único intersexo assumido em Portugal e um dos presidentes da associação Ação pela Identidade (API). “À partida, as cirurgias acontecem por questões estéticas, portanto pode-se aguardar para que a criança ou jovem possa realmente conseguir perceber o que se passa”, afirma o jovem de 27 anos ao Observador, acrescentando, contudo, que muitas pessoas intersexo “identificam-se com o género que lhes foi atribuído”: o problema está “no corpo” e naquilo a que este foi submetido.

Também Ana Lúcia Santos, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, considera essencial a questão da autodeterminação e do consentimento informado das crianças, mas tem uma visão diferente das questões de género.

A investigadora debruçou-se sobre a questão da intersexualidade na sua tese de mestrado (“Um sexo que são vários: A (im)possibilidade do intersexo enquanto categoria humana) e defende que existe uma “multiplicidades de sexos” — não apenas o masculino e o feminino — e que estas cirurgias são feitas com o intuito de “normativizar” não só “os corpos e os genitais”, mas também “os papéis sexuais, os papéis de género e a orientação sexual”. “A partir do momento em que se começar a olhar com naturalidade para a variação da natureza humana, as cirurgias deixam de ser necessárias”, acrescenta.

Mas pôr um travão a estas intervenções não é suficiente, sublinha Ana Lúcia Santos. Há trabalho a ser feito a nível da educação. “É preciso essa mudança a vários níveis: não só a nível médico e legal, mas também através de políticas públicas, nas escolas principalmente. Por exemplo, quando se dá biologia, é preciso ensinar realmente aquilo que acontece de facto e demonstrar a variedade que existe”.

“Hoje em dia já não se considera urgente atribuir um sexo a uma criança”

Este projeto de lei são boas notícias, considera Fátima Alves, uma vez que estas novas regras acabam por proteger os médicos. “Teremos de aguardar as orientações da tutela, sendo que o acompanhamento destes doentes não muda no que diz respeito à observação, investigação e propostas terapêuticas”, explica a cirurgiã. O que se altera, acrescenta, “é o timing da cirurgia”, o que não faz diferença para a especialista.

Conselho Europeu: "O direito à integridade física das crianças"

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À semelhança das várias recomendações do documento da ONU, a resolução sobre “O direito à integridade física das crianças” (2013), a Assembleia Parlamentar do Conselho Europeu apela a que todos os Estados membros façam “mais pesquisa” para ficarem a conhecer melhor “a situação específica das pessoas intersexo”; garantam que “ninguém é sujeito a tratamentos médicos ou cirúrgicos desnecessários, mais cosméticos do que vitais para a saúde durante a infância”; e assegurem a “integridade física, autonomia e autodeterminação das pessoas em causa e dar aconselhamento e apoio às famílias com crianças intersexo”.

Ainda assim, Fátima Alves defende que os médicos que diariamente trabalham com estas questões devem ser ouvidos. Catarina Marcelino referiu ao Observador que, para a elaboração deste projeto de lei, foram consultadas associações LGBTI, “inclusive associações que trabalham com famílias e crianças LGBTI”, tendo sido ainda pedidos pareceres ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e à Ordem dos Médicos.

As especialistas do D. Estefânia sublinham, contudo, que a postura da comunidade médica relativamente às alterações do desenvolvimento sexual mudou de há uns anos para cá, especialmente depois de 2006 quando as Sociedades de Endocrinologia Pediátrica Europeia (ESPE) e dos EUA elaboraram novos consensos internacionais para regulamentar estas práticas.

“Quando vim trabalhar para cá, em 1991, quando nascia uma criança com ambiguidade sexual ia toda a gente para a unidade de neonatologia porque era urgente atribuir um sexo àquela criança. Hoje em dia, o paradigma é completamente diferente”, explica a cirurgiã. “Por exemplo, se tivéssemos um bebé cujo sexo genético era masculino, mas que tinha um pénis muito pequeno, um orifício urinário fora do local e não se palpavam testículos nas bolsas, então mais valia transformar a criança em menina porque do ponto de vista cirúrgico era mais simples e a garantia de sucesso da intervenção era maior”, acrescenta.

Nils Muižnieks: reconhecer os intersexo legalmente

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“Apelo aos Governos na Europa a reverem as suas legislações e as suas práticas médicas, de modo a identificar as falhas na proteção das pessoas intersexo, e tomar medidas para resolver os problemas. (…) O direito a desfrutar de direitos humanos é universal e não pode depender do sexo da pessoa. As pessoas intersexo têm de ter reconhecimento legal desde o nascimento e deve-se facilitar a possibilidade de alterar as classificações de sexo e género para refletir as escolhas do indivíduo”, refere Nils Muižnieks, Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, num documento de 2014.

Atualmente, não só já não há a mesma urgência em fazer estas cirurgias, como, graças às técnicas utilizadas pelos especialistas, as intervenções são reversíveis para o caso do género escolhido pelos pais não ser aquele com o qual a criança se identifica. “O que se pretende é que a cirurgia, quando é feita sem a anuência da criança, porque é um lactente [criança com menos de um ano de idade], permita voltar atrás na decisão tomada pelos pais mais tarde, quando tiver capacidade de decisão e de escolha”, acrescenta Lurdes Lopes.

A equipa multidisciplinar faz um plano para cada doente para depois informar os pais e o menor (a não ser que se trate de um bebé) não só dos resultados dos exames, como também das opções terapêuticas. “Nós não forçamos nada. O nosso papel é dizer: ‘temos isto, as opções são estas’ e depois todos tomamos uma decisão”.

Mas nem sempre foi assim. A falta de informação relativamente às cirurgias e às terapêuticas é uma das queixas da comunidade intersexo um pouco por todo o mundo. “Os casos que chegam à API e que mais me tocam são de pessoas na casa dos 50/60 anos que foram submetidas a cirurgias, em bebé, e continuam até hoje sem se sentirem bem com o que lhes foi feito porque não tiveram informação“, conta Santiago.

Santiago D’Almeida Ferreira é o único intersexo assumido em Portugal

O ativista passou pelo mesmo: foram muitos anos a fazer exames e a receber tratamentos para os quais diz não ter sido devidamente informado. “Não me consigo recordar de todos os tratamentos e exames que fiz, nem do que tomei. Esta foi sempre a minha realidade, sem nunca me ter sido explicado. Havia sempre qualquer coisa que eu tinha de tomar ou de fazer“, conta o jovem, acrescentando que houve exames aos quais nunca teve acesso porque, segundo os médicos, tinham-se “perdido”.

Fátima Alves explica que isso, por vezes, acontecia porque os processos eram em papel e quando os doentes, anos mais tarde pediam para aceder aos exames, estes tinham-se perdido nos arquivos. Hoje em dia, e graças à informatização do sistema, há uma menor probabilidade de isso acontecer, uma vez que são introduzidos no sistema informático.

“Os pais têm de ter um filho rapaz ou rapariga”

Independentemente de se optar ou não pela cirurgia — os pais, por norma, concordam com as intervenções “para que a criança se integre e se desenvolva”, diz Fátima Alves –, a criança terá sempre de ser registada consoante o sexo masculino ou feminino, uma vez que em Portugal não existe o género neutro.

“O sexo vai ter de ser definido. Ponto. Não há sexos indefinidos”, explica Lurdes Lopes. A especialista adianta ainda que o mais importante é a forma como a pessoa se sente. Isto é, “se se vê como homem ou se se vê como mulher”, daí ser preciso determinar um género na criança. “O sexo de criação é muito importante e sobretudo se o diagnóstico que se faz é tardio”. Isto porque, de acordo com as especialistas, o sexo está longe de ser apenas físico ou cromossómico: é importante ter em conta “a parte cultural, religiosa, social, potencial de fertilidade, como vai ser a função sexual, etc”, explica Fátima Alves.

A psicóloga da equipa multidisciplinar do Hospital D. Estefânia também acredita ser preferível que uma criança seja educada com um género, ainda que mais tarde não se identifique com o mesmo, do que com um género neutro. “Crescer na ambiguidade não é bom. Os pais têm de ter um filho rapaz ou rapariga e ele é educado como tal. A criança depois vai fazer o seu percurso e nós vamos perceber se é rapaz ou rapariga”, explica Vera Reimão Pinto ao Observador.

"Os pais têm de ter um filho rapaz ou rapariga e ele é educado como tal. A criança depois vai fazer o seu percurso e nós vamos perceber se é rapaz ou rapariga", defende Vera Reimão Pinto.

Santiago D’Almeida Ferreira é da mesma opinião, “pelo menos para já, tendo em conta a nossa realidade”. O ativista ressalva o caso da Alemanha, onde foi criado o terceiro género, mas que acabou por estigmatizar ainda mais as crianças intersexo. “Nós [a comunidade intersexo] achamos que o X [como é designado no registo] é um selo para as crianças e cria mais pressão porque a sociedade não está preparada para este terceiro género“.

Choque, negação, revolta e aceitação

A escolha do género do bebé é apenas uma das muitas decisões difíceis que os pais de uma criança com ambiguidade sexual têm de tomar pelos filhos. Daí que o acompanhamento psicológico, tanto dos pais como da própria criança, seja tão importante desde o primeiro momento.

O trabalho de Vera Reimão Pinto começa a ser feito pouco depois do diagnóstico e pode prolongar-se ao longo da vida do doente. “A minha preocupação inicial é saber ajudar a família e a criança, mas sobretudo com os pais, caso os doentes sejam bebés — a intervenção vai-se adequando ao longo do crescimento. Ajudá-los a elaborar tudo isto, perceber o que está a acontecer, o que implicam todas as decisões que lhes vão ser solicitadas porque, em última análise, são os pais que decidem. Os técnicos aconselham, os pais decidem”, explica a especialista.

Para a psicóloga, há uma palavra-chave para estes casos de alterações de desenvolvimento sexual: tempo. Esperar e dar tempo aos pais para tomarem as decisões que considerem ser as mais adequadas para os seus filhos — e ao próprio doente, caso já seja adolescente –, e também à criança para se desenvolver. “Ao invés do que se fazia antigamente, que se tomava logo uma decisão fazendo-se a cirurgia final, hoje em dia espera-se e vai-se avaliando como a criança se desenvolve”, explica.

Aceitar um diagnóstico de alteração do desenvolvimento sexual não é fácil, pelo que as famílias passam por várias fases, desde o choque, a negação, a revolta até à aceitação do diagnóstico. “Numa fase inicial é completamente absorvente, mas depois as pessoas não vivem o dia a dia a pensar no diagnóstico. Olham para os filhos como a Maria e o António, e acho que é isso que também permite que as crianças tenham um desenvolvimento normal”.

“Ao invés do que se fazia antigamente, que se tomava logo uma decisão fazendo-se a cirurgia final, hoje em dia espera-se e vai-se avaliando como a criança se desenvolve”, explica a psicóloga.

A psicóloga procura estar presente nos “momentos-chave” para as famílias, como aqueles que antecedem as grandes decisões, por exemplo, em termos de tratamentos e intervenções cirúrgicas. Mas tem sobretudo de preocupar-se com o crescimento “normativo” da criança.

A verdade é que estes pais enfrentam várias frentes nesta batalha, a começar pela família. Pode ser complicado explicar esta situação complexa aos familiares, especialmente porque nos primeiros tempos os próprios pais ainda estão a mentalizar-se, como ainda é tudo muito incerto — demora até se chegar a um diagnóstico, a decidir o que fazer.

Ainda assim, Vera Reimão Pinto acredita que este não deve ser um assunto tabu no seio familiar. “Quando conheço as famílias, uma das minhas preocupações iniciais é perceber quem são os adultos de referência do casal — se há avós, se há tios, se há padrinhos, até podem ser externos à família. É importante que os pais consigam partilhar, porque não se pode viver sozinho com esta situação e quando deixa de ser um segredo, retira logo uma carga muito grande”, explica.

"É importante que os pais consigam partilhar, porque não se pode viver sozinho com esta situação", diz Vera Reimão Pinto.

Há de chegar um momento, contudo, em que será necessário os pais falarem desta questão a pessoas externas à família. “Por exemplo, se a criança vai para o infantário e ainda usa fraldas porque tem mesmo que utilizar. Há uma conversa com a educadora e os pais explicam aquilo que entendem”, diz a especialista, sublinhando que há fatores sociais que têm de ser tidos em conta. “Depende também de onde vivem: se é um meio pequeno ou grande. Se é um meio em que esta questão se ‘dilui’, ou é um meio muito pequeno em que toda a gente sabe quem é quem”.

Tudo feito em função do bem-estar da criança e de modo a que se sinta o menos diferente possível dos amigos e colegas. Mas chega a um ponto em que não é possível controlar o modo como as crianças são tratadas pelos pares.

Os tempos de escola não foram fáceis para Santiago. “Sofri bastante bullying até de pessoas que hoje em dia considero minhas amigas. As pessoas olhavam para mim e diziam-me: ‘Tu não és normal!’ ou ‘Não podes brincar com meninas’ e ‘Não podes brincar com meninos’ e eu não encaixava em lado nenhum”.

O ativista recorda ainda um episódio com uma professora de francês que, para o incentivar a falar mais alto durante uma aula, disse-lhe: “Fala como um homem, fala grosso”. “Lembro-me de ficar a olhar para ela sem saber o que responder. Foi uma grande violência, porque queria exprimir-me como homem e não podia, mas depois tinha aquela pessoa que eu via como autoridade a dizer-me para fazê-lo. Foi muito confuso”.

“Porquê tantas consultas se eu não me sinto doente?”

Há, todavia, um elemento que não pode ser esquecido nesta equação: a criança. “Os miúdos são muito observadores, atentos e vão assimilando algumas informações. Começam a perceber que há qualquer coisa e vão fazendo perguntas: ‘Porquê tantas consultas? Eu não me sinto doente.’”, refere a Vera Reimão Pinto.

Mas quando é que se deve contar o que realmente se passa? “Não há idades-chave”, defende a psicóloga. “É perante a maturidade da criança e perante o tipo de perguntas que vão fazendo. Os pais vão respondendo aos filhos em função daquilo que vão perguntando”.

Para a psicóloga Vera Reimão Pinto, "não há idades-chave” para se explicar a uma criança o que realmente se passa.

Uma opinião que não é consensual. A manequim Hanne Gaby Odiele que, no início do ano, se assumiu como intersexo com o intuito de retirar o estigma associado à pessoa com alterações do desenvolvimento sexual, preferia que lhe tivessem explicado desde cedo o que se passava.

A belga, diagnosticada com síndrome de insensibilidade aos androgénios (AIS), contou à USA Today que os seus testículos internos foram retirados quando tinha 10 anos, depois de os médicos terem explicado aos pais que “poderia vir a ter cancro e que não se iria desenvolver como uma rapariga normal”.

Oito anos depois, foi submetida a uma cirurgia de reconstrução vaginal. Intervenções que Hanne, atualmente com 28 anos, dizem tê-la traumatizado. “Tenho muito orgulho em ser intersexo, mas fico muito irritada que se continuem a fazer estas cirurgias. Ser intersexo não é uma coisa muito importante. Se tivessem sido honestos comigo desde o início… Tornou-se um trauma por causa do que me fizeram”, afirmou a modelo.

CAIS E PAIS

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O síndrome de insensibilidade aos androgénios pode ter duas variantes: completa (CAIS) ou parcial (PAIS). São distúrbios que ocorrem devido a “mutações no gene dos recetores dos androgénios”, explica a geneticista Ana Medeira.

Nos casos de CAIS, os recetores são completamente insensíveis aos androgénios, portanto os genitais masculinos não se desenvolvem e a criança nasce com genitais femininos, mas “com testículos intra abdominais e na região inguinal (por vezes confundidos com hérnias)”. Quando não são detetados na infância, estes casos são descobertos quando a menina chega à puberdade e não tem menstruação, porque não tem útero.

Nos casos de PAIS, são crianças com “uma masculinização variável” dos genitais internos e externos (por exemplo, um pénis pequeno).

 

Retirar testículos intra-abdominais é um dos procedimentos nos casos de insensibilidade completa aos androgénios (CAIS), uma das variantes das alterações do desenvolvimentos sexual, porque há risco de malignização, isto é, de desenvolver um cancro.

Por norma, os médicos recomendam que estes testículos sejam controlados ao longo do crescimento da criança, através de ecografias seriadas, e não retirados de imediato, porque a testosterona contribui não só para o crescimento em altura da criança, mas também para um crescimento mamário (através da ação de uma enzima que permite a formação de estrogénios). A cirurgia para remover os testículos acaba assim por só ser feita quando se chega à puberdade.

Foi precisamente isso que aconteceu a Maria, que, aos três meses, deu entrada nas urgências do Hospital D. Estefânia com aquilo que parecia ser uma hérnia inguinal com ovário encarcerado. Foi apenas durante a cirurgia para tratar a hérnia que os médicos se aperceberam que se tratava afinal de um testículo.

Nessa altura, a criança (à semelhança de Elsa) foi submetida a vários exames, entre os quais um estudo genético, uma ecografia abdominal e pélvica e um doseamento hormonal, através dos quais se verificou que se tratava de uma criança que geneticamente era um homem e não tinha nem ovários nem útero. Diagnóstico: síndrome de insensibilidade completa aos androgénios (CAIS).

Após os testículos terem sido retirados por laparoscopia, já na puberdade, a criança começou a fazer terapia hormonal para compensar a falta de estrogénios (hormonoterapia de substituição, com recurso a estrogénios).

Aos três meses, Maria (nome fictício), deu entrada nas urgências do Hospital D. Estefânia com aquilo que parecia ser uma hérnia inguinal com ovário encarcerado. Durante a cirurgia percebeu-se que se tratava afinal de um testículo.

Vera Reimão Pinto segue um outro caso de CAIS no D. Estefânia. “É uma menina, mas uma menina infértil, portanto o trabalho a fazer com esta família — em particular com a mãe — numa fase inicial, é trabalhar esta questão”, explica a psicóloga. À criança, a questão de nunca poder vir a ter filhos ser-lhe-á explicada quando tiver maturidade para compreender a situação, refere a especialista. “Antes disso há que explicar à criança que, quando chegar à puberdade, não terá menstruação. Temos de preparar essa fase”, acrescenta.

Todas estas questões relativamente às crianças intersexo ainda são pouco debatidas na sociedade civil. A vergonha e o medo do estigma levam muitos pais e doentes a não quererem assumir o problema genético.

Vera Reimão Pinto fala numa “necessidade de maior proteção”. “Há algum segredo sim. Tem que haver porque não é — não pode ser — algo de domínio público. As pessoas, às vezes, são curiosas de uma forma [invasiva], portanto há que proteger aquela criança”, explica.

Para Santiago, dar a conhecer a realidade das pessoas intersexo é a melhor maneira de terminar com o preconceito, tanto dentro das famílias como fora. “Acredito bastante na teoria de que conhecer as realidades muda as mentalidades das pessoas“.

"Acredito bastante na teoria de que conhecer as realidades muda as mentalidades das pessoas", defende Santiago D'Almeida Ferreira

Ainda assim, o ativista opta por não falar do seu diagnóstico. “Eu sei o meu diagnóstico, mas não falo sobre isso, porque acho que o mais importante são as dificuldades que enfrentamos nos serviços de saúde”, diz.

Foi só em 2015 que Santiago D’Almeida Ferreira se assumiu como intersexo. Já o tinha tentado fazer quatro anos antes, mas diz não ter tido “coragem”: “Estava a sofrer bastante estigma por parte da comunidade LGBT. Comecei a receber ataques de pessoas a dizer que era mentira, porque nunca o tinha dito antes ou porque nunca o tinha dito abertamente”. Dois anos mais tarde, continua a ser o único intersexo assumido em Portugal. “Espero não ser o único por muito mais tempo”.

*Os nomes das crianças e dos familiares descritos neste texto são fictícios.

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