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Júlia Nery: "A saudade já não é bem o que era"

O novo livro da escritora e antiga professora, “Ei-los que partem”, é um romance sobre a recente vaga de emigração portuguesa. Entrevistámos a autora no Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim.

Muitos jovens portugueses saíram do país, nos últimos anos, em busca de realização profissional. Júlia Nery encontrou inspiração nos seus antigos alunos e nos amigos dos filhos para escrever o livro Ei-los que partem – apresentado no festival literário Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, e que será lançado também em Lisboa a 2 de março.

Desde 1984 que publica obras literárias, tendo conciliado durante vários anos a profissão de escritora com a de professora do ensino secundário em Cascais. Aos 77 anos, Júlia Nery é um nome muitas vezes associado ao romance histórico: O Cônsul (de 1991, mas reeditado este ano) sobre Aristides de Sousa Mendes, Crónica de Brites (2008), com a história da Padeira de Aljubarrota, ou Da Índia, com amor (2012), que conta os testemunhos de mulheres portuguesas na Carreira da Índia, a ligação marítima entre Lisboa e Goa, são alguns dos títulos que escreveu.

No entanto, a autora não se ficou por este género. Teve também algumas experiências na escrita para teatro, com Na Casa da Língua Moram as Palavras (1993) e Aquário na gaiola (2010). E é na dramaturgia que Júlia Nery também quer continuar.

Mas por estes dias apresenta Ei-los que partem, um retrato da geração de novos emigrantes portugueses: que saem de Portugal em busca de novas experiências no mundo laboral, mas cujas mudanças se sentem mais nas relações interpessoais. No livro, acompanhamos um grupo de amigos que emigra para países diferentes e por razões distintas. Regularmente, reúnem-se: discutem o país, a vida e eles próprios. Há quem regresse a Portugal, mas há quem permaneça no lugar onde sempre pertenceu.

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“Ei-los que Partem”, de Júlia Nery (Sextante)

A história deste grupo de jovens emigrantes era um desafio literário que tinha em mente há muito tempo?
Era e não era. Alguns amigos dos meus filhos começaram a ir embora depois de acabarem os cursos. Alguns alunos meus (que era muito bons) fizeram o mesmo. O facto começou a incomodar-me e até fiquei com medo que algum dos meus filhos quisesse ir embora também. Era a geração a que eu chamo de “Mariano Gago” [antigo professor universitário e antigo ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior que morreu em 2015]: ou seja, uma geração onde o sistema de ensino dava muito valor à investigação e à criatividade, o que resultou na formação de um grupo de jovens muito habilitados. Porque é que se iam embora? Eu comecei a conversar com eles. Ia o namorado primeiro, depois seguia-se a namorada e depois casavam-se lá. O meu filho chegou a ir a um casamento de uns amigos no estrangeiro, onde todo o grupo português se reuniu. A resposta à pergunta era esta: iam-se embora, porque mesmo arranjando emprego em Portugal, não se sentiam reconhecidos. Parece que lhes faziam o favor de lhes dar trabalho. Eles que tinham o sonho de realizar e de fazer coisas boas, não tinham feedback nenhum.

Algum exemplo destes jovens que a tenha marcado?
Houve uma antiga aluna minha que se foi embora porque não encontrava os meios de investigação de que precisava. Este exemplo deu voltas na minha imaginação e eu acabei por criar uma personagem que tem desde pequenina um grande sonho: a de que haja água potável no mundo para toda a gente. Mas em Portugal, ela não tem como fazer investigação. É uma rapariga muito tímida e toda a gente se admira como é que ela sai do país. Acaba por estudar numa universidade nos Estados Unidos, na melhor instituição que investigava neste domínio. A imaginação de um escritor chega a todo o lado e ela acaba por cumprir o seu sonho.

Como pretendeu definir esta geração de emigrantes no romance?
Há um elemento comum: eles eram todos amigos e colegas. Intitulavam-se de “os desenrascas”, porque eram jovens que se desembaraçavam muito bem na vida. Foram escolarizados numa época (na qual eu era professora) em que a Europa era apresentada como o destino de todos. Todos éramos europeus. Eles foram educados nessa mística. Estes jovens não admitem que lhes chamem emigrantes – “Somos e estamos em circulação”. No fundo, emigram porque querem ser reconhecidos no trabalho e conseguem-no fora de Portugal, para conhecer novos mundos e para se valorizarem.

Podemos ter duas faces da mesma moeda: as potencialidades – a personagem Marta quer até “sair debaixo das saias da mãe” – e a necessidade (quase obrigatória) em sair do país. Como é que a Júlia vê esta vaga de emigração?
Alguns acabam por voltar a Portugal, com os conhecimentos que adquiriram lá fora. Não só os conhecimentos científicos, mas também aquilo que aprenderam nas relações pessoais. Felizmente vai acontecer o mesmo aos atuais emigrantes. Acredito que os jovens quererem conhecer coisas novas e valorizar-se vai ser uma constante, a partir de agora. O principal problema vai ser o regresso ou não. O país poderá absorvê-los ou não? Confio que haverá uma política de absorção destas pessoas com muita qualidade e que fazem muita falta a Portugal. No romance, temos um astrofísico, uma cientista, uma arquiteta de interiores e uma artista que descobre o dom da sua voz e um economista.

"Não incentivei, aconselhei ou contrariei. Não era mãe deles. Era professora, mas ainda assim não me pronunciei. Todas as pessoas, especialmente os jovens, têm o direito a procurar os seus caminhos e de aprender com os erros."

O que distancia e aproxima estes jovens emigrantes, daqueles que saíram do país em meados de 50 e 60?
Há a evocação do António Marinheiro no século XVI, os jovens do romance tornam-se vizinhos dos emigrantes dos anos 60 na Alemanha e uma das personagens é descendente também de emigrantes. Há um valor que procuro que esteja em todos os romances: a amizade. São um grupo de amigos (desde crianças) que estão lá uns para os outros. Num momento de perda, uma das personagens vem da Alemanha até aos Estados Unidos para tentar que uma amiga não desista da vida. Estão sempre em mobilidade e encontram-se regularmente. Nos encontros, têm grandes discussões sobre a sua situação e o futuro. A linha da amizade suporta-os muito.

No romance, há quem regresse a casa, mais propriamente a África.
Sim. Há uma linha de saída, que não sendo migratória, é muito importante: as pessoas que foram para África. E que chegaram a Portugal como retornados. Há um mistério na vida de uma das personagens e um dos jovens que “emigra”, vai para Angola, o país onde nasceu e onde passou a sua infância. Esse não volta a Portugal.

Como professora incentivou os seus alunos a procurarem desafios além-fronteiras?
Não incentivei, aconselhei ou contrariei. Não era mãe deles. Era professora, mas ainda assim não me pronunciei. Todas as pessoas, especialmente os jovens, têm o direito a procurar os seus caminhos e de aprender com os erros. Uma das discussões que se tem regularmente é: “Porque é que as pessoas partem ao longo de todos os séculos?”. Porque tudo o que o Homem faz é em busca da felicidade. Ora, os jovens estão na altura de fazerem as suas próprias experiências em busca da felicidade. Há uma personagem no romance que diz: “A felicidade está em todo o lado, é preciso é saber procurá-la”. Eu acho que quando alguém tem um sonho, o melhor é deixá-lo ir à procura dele.

Algum destes jovens emigrantes poderia rever-se neste livro? Ou nunca se preocupou com isso?
Não me preocupei, mas o facto é que o romance tem personagens muito diferentes. Um jovem parte porque é homossexual e não quer dar esse sofrimento à mãe, então vai fazer a sua vida mais longe. Temos a Marta que é uma artista que tem o dom da voz, mas não quer ceder a esse talento, porque sabe que vai ser “escravizada” por ele. Devo dizer que uma pessoa, que partiu e já voltou, reviu-se muito numa das personagens. Estive a assinar alguns livros depois do lançamento. Três das pessoas que compraram o romance vieram dizer-me que são mães que têm os filhos emigrados e identificaram-se com as histórias.

A ideia de que viajar tornou-se mais fácil e por isso, emigrar tornou-se mais fácil, não faz com que se generalize demasiado? Ou seja, deveria ser normal e simples para todos deixar o país.
Comecei a escrever este livro há bastante tempo. Por razões pessoais, parei e estive um ano sem escrever nada. Durante este tempo, as coisas mudaram muito. É uma pergunta muito difícil, porque eu não sei como vai evoluir a Europa. O que eu gostaria é que Portugal criasse condições para aproveitar tudo o que investiu na educação destes jovens. Porque neste momento, são países como a Alemanha e outros, que não investiram nada, que estão a aproveitá-los. Tenho muito esperança que no futuro isto mude. A saudade, que eu retrato no romance não tem nada a ver com a saudade dos anos 60. A rapidez da viagem, o Skype e todos os outros meios podem fazer com que a saudade seja menorizada. No entanto, também pode ficar mais assanhada. O conceito de saudade está em mutação, já não é bem o que era. Desde que não seja definitivo, andar de um lado para o outro, até nem é mau. Abrem-se horizontes, veem-se coisas novas e os relacionamentos amadurecem-se. Sou uma otimista e acho que esta “sangria”, como algumas pessoas chamam, vai estancar.

"Hoje, as pessoas têm mais capacidade para mudar e se adaptarem. Em termos nacionais, é uma dor. Quando eu sabia que um aluno se ia embora, e às vezes eram os melhores, ficava muito angustiada. Mas compreendia que tinham de ir."

Este livro pode ser também uma forma de suavizar a questão da emigração recente? De a tornar, de algum forma, mais romântica?
O meu primeiro romance foi sobre emigração nos anos 60 e acho que a recente vaga de emigração dói muito a nível nacional. Mas para cada uma das pessoas com quem falei e que acabaram por me inspirar, não foi um grande sofrimento. Os que voltaram encaram a saída como a experiência necessária para se enriquecerem. Daquilo que eu pude observar, não quer dizer que não se verifique, não é uma situação tão dorida a nível pessoal como era nos anos 60. Hoje, as pessoas têm mais capacidade para mudar e se adaptarem. Em termos nacionais, é uma dor. Quando eu sabia que um aluno se ia embora, e às vezes eram os melhores, ficava muito angustiada. Mas compreendia que tinham de ir.

A História de Portugal tem sido esmiuçada pela Júlia em várias obras ao serviço do romance e da ficção. É uma forma de aproximar o leitor do passado e assim cativá-lo?
Uma coisa é romance histórico, outra coisa é História. Não estamos preparados, na minha ótica, para ver o futuro se não tivermos compreendido a História. A História ensina-nos a compreender o que aí vem e a não cometer os mesmos erros. Relativamente ao romance histórico, foi uma fase de que gostei muito. Mas cheguei a um ponto em que disse a mim mesma que ia parar: “Vou escrever outra coisa”. Já estou a escrever outro livro, que não tem nada a ver com este último ou com o romance histórico. Para mim, o prazer da escrita é a descoberta.

A Júlia já escreveu para teatro. O que encontra na dramaturgia que não encontra, por exemplo, no romance histórico?
A escrita para teatro é mais real, ou seja, quando escrevo tenho de ser muito mais rápida e habilidosa em desencadear emoções. Escrevi uma peça de que gosto muito — o Carlos Avillez encenou –, que se chama Aquário na Gaiola. É a história de iniciação de dois adolescentes e o texto é emoção do início ao fim. No teatro, tem de ser assim: mostrar emoção e muito mais rapidez no desenvolvimento do que num romance. É mais vida. Estou a escrever uma peça há cerca de doze anos: leio o que acabo de escrever e não é nada daquilo que eu quero, apago. Mas dá-me prazer. Ainda não conseguir pôr a peça em pé, porém gosto muito de escrever para teatro.

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