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Jogadores de futebol de ocasião encontram um coveiro que se suicidou. É assim que se inicia E Se Eu Gostasse Muito de Morrer, primeiro romance de Rui Cardoso Martins (Portalegre, 1967) com traduções em várias línguas e agora reeditado pela Tinta da China. “Uma terra em que até o coveiro se mata”, assinala-se no texto, logo a seguir à descoberta. “Quem nos enterra agora. O suicídio do coveiro é dos factos mais importantes de uma cidade.”
Ao olhar para trás, Cardoso Martins diz que o impulso para escrever o livro inaugural do seu percurso literário lhe chegou da necessidade de dialogar com a circunstância biográfica de várias pessoas próximas de si se terem suicidado enquanto crescia no Alto Alentejo. Colegas que se enforcaram depois de assassinarem pessoas, colegas de carteira com excelentes notas, que se mataram com tiros e comprimidos, homens que atravessavam as ruas com cordas na mão. “Como é que pude aceitar estes acontecimentos trágicos sem questioná-los?”, perguntou-se na sequência de ter vivido um episódio-limite: um acidente de carro, numa altura em que os seus filhos estavam consigo, na viatura. Depois de um susto maior, acordou para a urgência de escrever todos os dias, com disciplina, enfrentando uma dúvida essencial que tinha ficado por esclarecer.
Entre a ficção e a realidade
O escritor, que levou muito tempo até achar que tinha capacidade para escrever sobre o suicídio, fez o que fazem os escritores: criou um território “ao lado” daquele onde se fez. Desenhou depois um narrador que, “baralhado”, faz generalizações várias e que, em busca de respostas, sente necessidade de consultar a internet para recolher dados sobre as taxas de suicídio em territórios tão distantes como Vellore, estado de Tamil Nadu, no sul da Índia. Para escrever o livro, Rui fez uso da sua experiência jornalístico-literária – e humana — nas crónicas “Levante-se o Réu”, sobre casos de tribunal de polícia, publicadas no Público, tendo procurado recorrer à empatia e ao respeito pelas pessoas no momento de as transformar em personagens literárias.
Quando convocado para falar sobre a alta taxa de suicídio no Alentejo, o escritor fala num “mistério individual” que não pode ser tratado com qualquer tipo moralismo. Enumera causas prováveis e difusas e depois prossegue para a análise de um “Alentejo excessivo e contraditório onde o amor à terra se cruza com um sentido crítico grande”. A crítica de quem ama e de quem se farta. Em conversa, vai caracterizando os alentejanos como transportando um misto de orgulho, altivez, chico-espertice e sentido de partilha. “Toda a gente oferece tudo. Nas mesas há vinho e queijo e maçãs cortadas para todos. Mas ao mesmo tempo as zangas familiares são muito fortes.”
Sobre os perigos que correu ao pisar literariamente território tão perigoso, Rui Cardoso Martins situa aquilo que pretendeu fazer deste modo: “Nunca quis glorificar o suicida”. Na epígrafe do livro há uma citação familiar que é um mote para a voz irónica através da qual se debate com a figura do suicidário: “Não gosto de pessoas que se matam. Acho uma falta de educação”. Usou do humor para tocar num dos mais delicados temas. Sempre numa perspectiva à qual regressa quando é convocado para tal: “O humor não serve para aligeirar mas sim para aprofundar”.
Henrique Raposo e as promessas
O projecto de Henrique Raposo é muito diferente do de Rui Cardoso Martins. Antes de mais, Raposo não é alentejano – tem raízes no Alentejo. E foi à terra dos familiares em busca de uma identidade, escrevendo depois sobre essa procura num tom entre o ensaio biográfico e a reportagem com um ângulo pessoal. A pesquisa terminou em corte “consciente” e “triste” com a terra dos seus antepassados. A questão do suicídio foi decisiva. Em “Alentejo Prometido” escreve a certa altura que “o suicídio corre forte na família”. Facto que desconhecia. Sabia que o suicídio era um dado alentejano, mas não conhecia casos em gente do seu sangue. “Não se falava disso. Foi com o livro que cheguei lá. Nem sabia que o suicida que abre o livro era meu antepassado, por exemplo”.
A viagem oscila entre a visita aos lugares dos seus, às histórias de família, à partilha de números e às formulações a que já nos habituou num estilo cronístico pouco dado ao meio-termo. Onde fica o sentimento compassivo perante a solidão do suicida em alguém que se assume como católico? Henrique responde assim: “Como digo no livro, o suicida é uma personagem que me fascina e que quero compreender”. O que diz não aceitar é aquilo que classifica como uma “cultura passiva dos vivos em relação ao suicídio”. Sente um misto de “compaixão e volúpia literária” por um suicida em concreto, mas, comenta, recusa pertencer a uma cultura que, no seu entender, aceita o suicídio de forma passiva. “Pior: muitas vezes, os alentejanos glorificam o suicídio”, sentencia. E acrescenta, aprofundando o seu ponto de vista: “O alentejano nem sequer tem a linguagem que possibilita a crítica moral do suicida”. Henrique não sabe se a situação do suicídio tão frequente no Alentejo é reversível mas tem “fé na nova geração que está agora entre os 10 e os 20 e tal anos”.
O transmontano José Rentes de Carvalho assinalou no lançamento de “Alentejo Prometido” que o suicídio no Alentejo tem um correspondente em Trás-os-Montes: o homicídio. Raposo recorre de novo a uma passagem do seu livro para concordar com aquele que considera ser um mestre (Rentes escreveu em 1971 o muito crítico “Com os Holandeses”, vivendo na Holanda). “A violência doméstica, por exemplo, que acaba em homicídio é sobretudo um assunto que fica acima do Tejo. São raros os casos de feminicídio no Alentejo. Quando sente o seu ideal de masculinidade ofendido, o alentejano não mata, mata-se a si mesmo”. Apontamento que lhe oferece novo comentário: “Acho que há aqui uma dignidade senatorial no alentejano. Entre matar a mulher e matar-se a si mesmo, julgo que o mal menor é a segunda.”
Que reacções tiveram os dois autores em relação aos seus livros tão distintos, no género e nas suas encruzilhadas? As críticas iradas a “Alentejo Prometido” são conhecidas: houve ameaças directas e promessas de queima de livros. Mas também há um público vasto que elogia, mesmo que alguns manifestem discordâncias. Não só na comunidade virtual com quem partilha afinidades. Raposo diz saber que “muita gente começou a fazer perguntas na família” e a fazer aquilo que tentou realizar no livro, “descobrir o seu passado encoberto em mitos e segredos”. Para o cronista do Expresso era bom que surgisse a “Beira prometida” ou o “Minho prometido” ou os “Açores prometidos”. Rui Cardoso Martins, aquando das primeiras edições de “E Se Eu Gostasse Muito de Morrer”, ouviu de tudo: desde pessoas que o aplaudiram por abordar romanescamente e de um modo muito seu, entre a tragédia e a comédia, um tema que toca a muitos, até pessoas que preferiam que o evitasse. “E até houve amigos alentejanos que me disseram: ‘Não gosto do teu livro. É demasiado brando’”, conta, entre risos.
Um povo de suicidas?
É conhecida a afirmação de Miguel de Unamuno, escritor e filósofo espanhol: “Portugal é um povo de suicidas”. Ideia que, noutros termos, o autor e médico português Manuel Laranjeira também exprimiu num conhecido texto (incluído em Pessimismo Nacional, publicado em anos recentes pela Opera Omnia), no qual se refere a uma “terra onde homens de génio como Antero de Quental, Camilo e Soares dos Reis têm de recorrer ao suicídio como solução final duma existência de luta inglória e sangrenta”.
O director do serviço de psiquiatria do Hospital de Santa Maria, Daniel Sampaio, considera que a frase de Unamuno deve ser entendida como “uma alegoria, usada para exprimir uma certa tristeza existente no quotidiano dos portugueses”. Do ponto de vista científico, a frase está errada. “Os países do Sul da Europa têm taxas modestas de suicídio comparadas com os valores das taxas da Europa do Norte”. Em Portugal, só as taxas a sul do Tejo (sobretudo no Alentejo) são elevadas.
O psiquiatra Carlos Braz Saraiva, coordenador do livro “Depressão e Suicídio” (Lidel, 2014), vai no mesmo sentido. . Refere que Unamuno escreveu um livro sobre Portugal e os portugueses depois de viajar pelo país no final da Monarquia. Muito impressionado pelos recentes suicídios de intelectuais, exemplificados nos autores citados por Laranjeira, apelidou-nos de um povo de suicidas. “A figura contém carga simbólica, talvez o fim de Escola da Geração de 70, e não tanto sobre os números epidemiológicos gerais do país, assaz baixos dentro do panorama europeu”.
Braz Saraiva contextualiza. As taxas de suicídio em Portugal eram globalmente baixas no final do século XX quando comparadas com as dos demais países da Europa. Ou seja: sempre abaixo dos dois dígitos. “Já no século XXI passámos a ter dois dígitos [acima de 10 suicídios por 100 mil habitantes e por ano].” O Alentejo é um caso à parte: “Contrastantes continuam a ser os números elevados do Alentejo em relação aos do resto do país.” Por exemplo, quando comparados com os do Minho ou de Trás-os-Montes a diferença é muito significativa. “Todavia, se compararmos Portugal no seu todo com a Rússia ou os países bálticos e escandinavos, a nossa realidade é mais favorável”.
O também professor de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra salienta o facto de muito já se ter afirmado nas Letras e nas Ciências sobre o suicídio no Alentejo. Em 1998, conta, houve um congresso em Odemira para debater o assunto, quebrando um tabu. Foi possível reunir médicos, sociólogos, psicólogos, autarcas, assistentes sociais, a GNR, sacerdotes e outros protagonistas essenciais à prevenção. “Foram decididas medidas para mitigar a força da tragédia”. Gesto difícil mas possível em algumas dimensões tendo em conta os estudos existentes. “As causas do suicídio no Alentejo há muito que são conhecidas: isolamento, desertificação, pobreza, envelhecimento, migração, desesperança, personalidade depressiva, alcoolismo, baixa religiosidade, falta de apoios médico-sociais. Só para destacar as principais.”
Regista um dado: a maior parte das famílias alentejanas tem um suicida no seu repositório de memórias familiares. “O que pode perpassar a ideia de uma maior compreensão e aceitação pela renúncia à vida de alguém que persiste desmoralizado ou doente ao longo de meses ou anos.” Ou de alguém que não quis ou não soube pedir ajuda. “É de não esquecer que estamos a falar de homens suicidas idosos e não de jovens, de acordo com o retrato comum.” E os métodos violentos usados não deixam grande margem para a sobrevivência. “Há uma certa aceitação cultural. Mas não se pode dizer que é natural.”
O psiquiatra Daniel Sampaio também destaca o facto de o suicídio sempre um “fenómeno multideterminado”. Acrescenta ao que apontou o seu colega como hipóteses mais válidas para o mesmo a existência de muitos casamentos consanguíneos entre pessoas com depressão e, concretizando um dos factores já apresentados, as dificuldades de implementação de seguimentos psiquiátricos continuados, “essenciais para a prevenção do suicídio”.
Ao sul
Há mesmo no Alentejo uma maior aceitação — cultural e social — do suicídio do que a que existe noutras zonas do país? Para Ana Matos Pires, psiquiatra e directora do serviço de psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, não há. “Discordo em absoluto dessa leitura, desde logo porque a condenação do suicídio, no Alentejo ou noutras regiões, é um mito que não tem tradução real, é uma herança e uma extrapolação da condenação religiosa do suicídio como ‘pecado’.” Por outro lado, refere, uma afirmação desse tipo dá a falsa ideia de que o no Alentejo não se sofre com o suicídio de alguém. “Dizer que os alentejanos aceitam o suicídio no sentido de não sofrerem com ele, de não sentirem a perda como as gentes de outros sítios, é falso.”
O suicida está, segundo a médica, encurralado no seu sofrimento e na sua desesperança. “Houve um homem, Beck, que estudou as cognições depressivas e que falava no ‘desespero aprendido’ e em como as cognições depressivas alteravam a percepção da realidade no deprimido, em particular o modo como, em virtude do estado depressivo, o futuro era visto como ‘negro’.” Alega que são a falta de alternativa e a angústia que determinam, muitas vezes, a perda de controlo do impulso e a passagem ao acto suicida. “Nesse sentido, o suicida está, ou sente-se, encurralado e sem alternativa.”
Ana Matos Pires acha decisivo que as questões do suicídio em Portugal, e por maioria de razões no Alentejo, sejam discutidas com cautela e rigor, com dados muito bem colhidos, estudos muito bem desenhados e conclusões sustentadas. Em caso contrário, “o risco da desinformação é grande”. Já para Carlos Braz Saraiva, romances como o de Rui Cardoso Martins e teses como a de Henrique Raposo são importantes para a discussão deste tema fracturante da sociedade. “A mudança de atitudes e juízos pressupõe algum esforço de dialéctica”, diz. O importante, conclui, é que haja serenidade para uma abordagem racional e objectiva do problema.