Tudo começou com cinco caixas. Lá dentro estavam cartas, fotografias e filmes caseiros, gravados em película de 8 milímetros. Depois de percorrer o espólio do seu avô Luís, a jornalista Sofia Pinto Coelho decidiu contar a surpreendente história de um dirigente influente do Estado Novo que se apaixonou por uma modelo americana e, por ela, “renunciou à pátria, a Salazar e à família”.
Nada faria adivinhar isto. Luís Pinto Coelho percorreu com dedicação e normalidade o percurso das elites salazaristas: foi professor catedrático de Direito, comissário nacional da Mocidade Portuguesa e deputado; trabalhou para António Champalimaud e para Manuel Espírito Santo; foi nomeado embaixador de Portugal em Espanha em 1961.
Foi em Madrid que tudo mudou. Na capital espanhola, Luís Pinto Coelho conheceu Kit — e apaixonou-se de forma irremediável. Estava casado há quase trinta anos e tinha seis filhos. Nada disso travou o romance, que é descrito nesta pré-publicação e levaria Luís Pinto Coelho a deixar a família, a embaixada e o país.
A seguir pode ler dois excertos do capítulo XI, “Descoberto”, onde se fala também do momento em que o embaixador português soube que tinha sido descoberto em Espanha o corpo de Humberto Delgado. O Observador mostra ainda dois vídeos do espólio de Luís Pinto Coelho. Antes, veja aqui a fotogaleria com imagens do acervo da família. O livro “O meu avô Luís”, de Sofia Pinto Coelho, é uma edição da Guerra & Paz e chega às livrarias no dia 21.
No primeiro Verão da paixão, em Agosto de 1964, o meu avô não conseguia pensar em mais nada: só queria estar com a Kit. Tinham passado seis meses desde Tenerife e três meses desde que tinham sido «descobertos». Tinha ido, como era costume, passar a temporada a San Sebastián. Ficou alojado no Hotel Orly, sozinho. A minha avó, para arejar, tinha ido para Edimburgo, onde estava a viver um familiar. Um dos filhos acompanhou-a nessa viagem e escreveu ao meu pai: «A verdade é que, coitadinha, a mãe, apesar do seu estado, não pede muito. Pelo contrário, com muito pouco faz-se a festa.»
De dia, o meu avô ia para o consulado trabalhar, mas nesse Verão, exceptuando os «dias de mala» (quando chegava a mala diplomática com expediente para tratar), houve pouco que fazer. O facto de ter começado a terceira frente da Guerra Colonial (em Moçambique) não agitou o remanso estival. Por isso, conseguia ir à praia e, duas ou três vezes por semana, a França, a Saint-Luc-sur-Mer (onde a Marana, sua mãe, se tinha arruinado) ou a Biarritz. «Quase sempre desafiado pelos Mathias [o diplomata Leonardo Mathias e a mulher, Isabel Rilvas], que são excelentes companheiros e sempre com o pé a pular para estas pândegas pacatas», escreveu ele ao filho mais velho, José Gabriel. Continuou: «Vamos muito ao casino, mas eu já cortei a colecta com o “considerável” prejuízo de 100 francos (= 600$00). Entretenho-me à vez, encontra-se toda a gente conhecida e exercito a minha força de vontade.» Depois, conteve-se de vez. Foi uma das provas de amor que ofereceu à Kit, quando percebeu que ela não aprovava estas «excursões». Escreveu-lhe a contar isso mesmo e terminou dizendo: «Quero-te muito, muito. Eu, sim, estou “madly in love with you”.»
A Kit ofereceu-me todas as cartas de amor que trocaram. O meu avô escrevia-lhe em castelhano e começava as cartas com «Mi adorada Kitita», «Adorable little baby», «Mi angelito», «Adorable blond angel», «Mi vida!», «Mi adorado amor»… Ela respondia-lhe em inglês e tratava-o por «My adorable teddy bear» ou «Darling Luisillo mio». Ler cartas de outra pessoa, seja ela quem for, tem alguma coisa de intrusivo. É como se estivéssemos a espiar alguém… Mas foi assim, a ler a correspondência dele, que fui compreendendo a sua paixão e, depois, o seu desespero: «Não podes imaginar a felicidade que tive quando o concierge me entregou a tua primeira carta. Tive de me afastar rapidamente para que ele não percebesse como tremia. Os dias que passo sem te ver pesam-me como séculos. Não consigo interessar-me por nada nem por ninguém. Não penso em mais nada, senão em ti… A minha vida está nas tuas mãos. Te quiero con locura.» Foi a primeira carta que lhe escreveu.
Para quem teve o seu percurso, as cartas são inesperadas. E comoventes: «Dei-me conta, pela primeira vez na minha vida, de que o verdadeiro amor – o amor – é insaciável. Quanto mais se recebe, mais se quer receber; e quanto mais se recebe, mais se quer dar. Sem parar, sem terminar…» Será que, quando estava com a Kit, também lhe dizia estas palavras? Como: «Estou quase a compreender que seja possível morrer de felicidade, quando a felicidade é tão grande que quase faz estalar o coração, sufocar, parar o cérebro.» As cartas, que traduzi, são ainda mais belas na língua em que foram escritas – as do meu avô em castelhano, as da Kit em inglês. Quantas lhe terá escrito o avô? São tantas que parei de as contar. Nem as conseguiria transcrever. De cada vez que acabava de ler uma – que achava mais apaixonada do que a anterior –, vinha outra com frases ainda mais românticas: «Eu também não consinto que sofras por minha causa, nem sequer em sonhos. Os sofrimentos quero-os todos para mim. Para ti, nem um único! Na tua alegria, na tua tranquilidade e na tua felicidade, está a minha felicidade, mesmo que para isso tenha de sofrer. Nem imaginas quanto te quero! Continuo a pensar em ti como se fizesses parte de mim. Adoro-te.»
Era a primeira vez que estavam longe um do outro e ele conseguia, em cada carta, terminar de forma diferente: «Como tu, não há outra no mundo» ou «És o único verdadeiro Amor que conheci em toda a minha vida!» A correspondência aproximava-o dela: «Três dias mais sem notícias da tua parte; três séculos mais de espera impaciente. Comunicar contigo é, para mim, uma necessidade premente e urgente. E mesmo que não tenha a segurança de que me poderás responder, já ficarei feliz com a esperança de que tenha algum eco. E mesmo que nem sequer tenha eco, ficarei contente com nada mais do que gritar, desta forma silenciosa, este amor que me abrasa. Ontem, durante o dia inteiro, foi-me impossível fazer nada mais que pensar em ti. Nem sequer tive vontade de almoçar. Depois de te escrever, deitei-me em cima da cama, com a tua carta, tentando imaginar o que estarias fazendo e recordando um por um os instantes que temos vivido juntos.» Assinou: «I kiss you with all my “terrific” love». Nada, imaginava, os poderia afastar: «Crês que um amor como o meu pode conformar-se com a inteligência, a razão, a prudência, a conveniência ou as distâncias?» Também a Kit se sentia diferente: «Reparaste que estar apaixonado faz com que olhemos para tudo com olhos diferentes? A minha experiência contigo leva-me a duvidar se alguma vez terei estado apaixonada.»
«Vou-me deitar com a tua voz nos meus ouvidos e repetindo, com muito carinho, milhões de vezes: Kit, Kit, Kit… Adorada Kit!»
Nesse primeiro Verão, os ciúmes já estavam à espreita: «Faz-me sofrer horrores a ideia de que alguém pense em tocar-te nem que seja com um dedo. Tenho plena confiança de que o teu amor te defenda. Mas não consigo evitar os ciúmes horríveis ante a ideia de que outros te desejem. Procurarei afastar essa dor. Vou-me deitar com a tua voz nos meus ouvidos e repetindo, com muito carinho, milhões de vezes: Kit, Kit, Kit… Adorada Kit!» «Tens de te livrar desses pensamentos e medos tolos», respondeu-lhe ela, como sempre, de forma curta e directa, «Let’s face it: I’m in love with you.» E acrescentava: «A noite passada foi um exemplo. Fui a uma festa, no Marbella Beach Club, onde estavam mais de 200 pessoas, a maioria das quais eu conhecia, mas detestei cada minuto e saí assim que pude. Felizmente toda a gente pensa que eu estou apaixonada pelo Roddy de Heeren.» A mãe dela, que nada sabia do que se passava, achava estranhíssimo vê-la a redigir cartas, pois ela nunca tinha gostado de escrever.
Embora a minha avó Piinha já soubesse do caso, continuavam com receio de serem apanhados. Seria um escândalo. Nesse Verão, a Kit passou as férias no Hotel Guadalmina, em Marbelha. Para endereçar os envelopes, combinaram que o melhor seria ela passar a usar o título Professor e não Embaixador. Da mesma forma, tinham cuidado sempre que iam buscar o correio à recepção. «Vou dar uma boa gorjeta ao recepcionista, para ele ser simpático comigo», contou a Kit. Escreveu também: «É engraçado estar sentada aqui no lobby do hotel e ver tantos homens que me parecem tão feios. Além de tudo o mais, és o homem mais bonito do mundo.» A Kit, já então, era frontal. Dizia-lhe: «Estou a tentar eliminar o sexo dos meus pensamentos o mais que é possível. Seria fisicamente impossível para mim fazer amor com outro homem que não fosses tu. Oh dear, não posso pensar nem falar de sexo – só comer e dormir e piscina e touradas.»
No princípio de Setembro, combinaram encontrar-se: ela foi ter com ele a Hendaia, a 25 quilómetros de San Sebastián. Teve de mentir à mãe, dizendo-lhe que iria encontrar-se com uns amigos a Biarritz; estava fora de questão dizer que ia ter com um homem casado. Escreveu-lhe a preveni-lo de que ficava com o cabelo horrível sempre que estava perto do mar. Ele respondeu-lhe: «Não me assusta nada o teu cabelo “awful”; estou preparado para tudo. Não sei fazer mais nada do que adorar-te, estejas como estejas. No meu coração serás sempre guapíssima, la guapa!» A Kit percorreu os 500 quilómetros desde Madrid sempre com receio de encontrar alguém conhecido no comboio. À chegada, teve de ir de táxi. O meu avô não podia ir buscá-la à estação no carro oficial, claro, porque podia ser reconhecido. Ficaram 15 dias juntos, num hotelzinho à beira-mar. «Foi a nossa “lua-de-mel”.»
Quando se aproximou o fim daquele primeiro Verão, ele estava ainda mais apaixonado por ela. Veio a Portugal passar férias com a família, no Estoril, e não conseguia ter um minuto de sossego: «Não sentes como sofro?» As cartas para a Kit eram a sua única salvação: «Por causa do trabalho e de tantas visitas que tenho tido… são muito poucos os momentos em que consigo estar sozinho. Mas a cada dia que passa parece-me mais evidente que não posso viver sem ti, que tu és a minha vida, fazes parte do meu próprio ser.» Foi dar um passeio no iate do seu irmão e teve finalmente um momento de tranquilidade: «O meu irmão convidou-me para ir andar no seu barco à vela. Navegámos para o mar alto, até muito longe de terra, até muito longe de tudo e todos. Como sou inútil para manobrar o barco, deitei-me de costas no convés a olhar as velas, o céu e as gaivotas e a pensar, a pensar, a pensar em ti. Com o bater da água no casco do barco, até pude “falar contigo” – baixo, muito baixinho, para que só tu e Deus me pudessem ouvir…»
No regresso a Espanha, no Outono, o meu avô fez uma paragem na serra de Guadarrama: «Se, como sempre, te trazia no meu pensamento, naquele momento senti-me mais perto de ti do que nunca, senti-me mais teu que nunca e também como nunca desejei ter-te junto a mim!! Vi o pôr-do-sol mais bonito e mais longo de toda a minha vida. Ao chegar à vertente norte da serra de Guadarrama, o céu, por cima de nós, estava completamente limpo, mas no horizonte o Sol começava a desaparecer atrás de uma parede de nuvens imponentes e belas. E, durante mais ou menos duas horas, assisti maravilhado a esse espectáculo das nuvens a mudar de cor, desde o cinzento ao vermelho vivo, e que pareciam desaparecer sob o calor do Sol na sua despedida. E, ao mesmo tempo, a terra e a própria serra, com os verdes-escuros das árvores e os cinzentos-negros das rochas, “ouviam-te” repetir o que muitas vezes me disseste − que gostarias de estar a só comigo entre a Natureza.» Já regressado em pleno aos afazeres da embaixada, continuava a sentir necessidade de escrever. Até num papelucho que arrancou de um bloco-notas: «Sempre, e até mesmo no meio das crises e dificuldades mais agonizantes, o meu pensamento e a minha vida está contigo. Adoro-te loucamente e adorar-te-ei haja o que houver. Estou a andar sozinho pelas ruas, mas estás no meu pensamento e no meu coração. Que Deus me ajude, se eu o merecer. 8 de Novembro, 5h15 p.m.»
Ambiente de tensão no casarão da embaixada
Nesse mês de Novembro, enviou-lhe uma fotografia sua, em funções, de casaca, com a anotação «With love». Foi precisamente na altura em que o seu terceiro filho se casou. Tal como sucedera no ano anterior com o meu pai, este, Luís, que tinha 22 anos e era pintor, também não tinha modo de vida autónomo. Até ter um ganha-pão, ficaria a viver na embaixada, com a mulher. Para a minha avó foi outra empreitada. No caderninho dela, a lista de tarefas incluía a compra de veludo para um reposteiro, estofar uma cadeira Voltaire e arranjar as molas de outra. O presente foi um faqueiro, de alpaca, comprado na Joalharia Durán, da Calle Serrano. Custou 8700 pesetas, mas, como os criados da embaixada se juntaram e ofereceram 1080 pesetas, ficou-lhes por 7620 pesetas.
O filho Luís casou-se a 28 de Novembro de 1964. Nesse dia, a Kit escreveu-lhe: «Pensei no casamento desejando que fosses tu e eu.» Nas fotografias, a avó está com o eterno colar de pérolas e ele com um ar distante. Ou serei eu a imaginar isso, agora que sei da história? No dia anterior, o meu avô tinha estado a conversar com o filho mais velho, como relatou à Kit em carta. «M» era na correspondência entre eles a letra que usavam para se referirem à minha avó: «Soube que M. lhe tinha contado o seu problema, o nosso problema, mas que ele está muito longe de acreditar que as suspeitas dela tenham algum fundamento. Ele atribui a crise a uma depressão nervosa de M., que tenha agudizado o seu carácter desconfiado, isolado, instável, etc. Portanto, em princípio, estão do meu lado (apesar de não estarem contra ela) e tudo o que queria saber era como podia ajudá-la, como nos podia ajudar. E, concretamente, se a deveriam aconselhar a ficar aqui [em Lisboa] mais algum tempo ou a voltar para aí. Ou seja, sem ocultar que tenho culpas, não tive coragem para confessar a verdadeira situação mas disse-lhe claramente que me parece necessário que ela fique.» Também lhe contou que tinha estado com o irmão: «Contei toda a verdade ao meu irmão. Ficou surpreendido e muito preocupado pois conhece-me bem e sabe que levo tudo muito a sério na vida. Entre outras coisas, disse-me que nunca deveria dizer a verdade nem à M. nem aos meus filhos. À M. porque só criaria uma situação irremediável; aos meus filhos porque só lhes daria um enorme desgosto pela decepção que teriam.»
Quando regressaram a Madrid, Luís e Piinha praticamente não se falavam. Tinham decidido que seria melhor os dois filhos mais novos terminarem o liceu em Lisboa, ficando em casa da avó baronesa. No casarão da embaixada, além dos empregados, viviam ainda a filha e o filho, recém-casado, com a mulher. Foram eles as testemunhas do ambiente de tensão que se vivia, todos os dias, do levantar ao deitar. As refeições eram a pior altura. Com criados a servir, naquela mesa descomunal, tentavam fazer conversa, mas a minha avó aparecia de óculos escuros por ter estado a chorar. Praticamente não dizia uma palavra. A meio da noite ouviam-se os passos dele a sair de casa. Não tinha coragem de a enfrentar e não era capaz de lhe dizer que ia sair. Mandava informá-la de que nesse dia não vinha jantar ou que iria ao futebol – tudo estranhíssimo, não só porque não costumava jantar fora, mas porque nunca tinha apreciado futebol.
O avô sentia-se agrilhoado. Não tinha forma de fugir da sua própria vida. Então disse ao mordomo para o mudar de quarto e deixou de dormir no de casal. Foi tremendo para a avó, sobretudo com os criados a perceberem o que se estava a passar. A partir desse dia, qual seria o passo seguinte? Não podia mudar de casa, porque vivia na embaixada. Não podia «expulsar» a mulher. Não podia simplesmente passar a viver com a Kit. Tudo eram obstáculos intransponíveis.
[Veja os vídeos domésticos das férias em família de Luís Pinto Coelho]
De cada vez que estava longe da Kit, vinham-lhe pensamentos aflitivos: «Onde estás? O que fazes? Pensas em mim? Sentes a minha falta? Como antes ou já te estás a acostumar à minha ausência e a caminho da conclusão de que, afinal, podes muito bem viver sem mim?» O meu avô tinha vindo passar o Natal a Lisboa. Escreveu-lhe, em papel do Hotel Fénix (será que já nem ia dormir a casa quando vinha a Lisboa?), contando-lhe que, como era costume, tinham ido à missa com a família: «Passei a passagem de ano na igreja, ouvindo a Missa da meia-noite. Asseguro-te (e que Deus, se puder, que me perdoe!) que o meu pensamento esteve, durante todo o tempo, contigo.» A Kit enviou-lhe um telegrama: «AMOR FELICIDADE AMOR SUCESSO AMOR SAÚDE AMOR REALIZAÇÃO AMOR TUDO AMOR EM 1965 AMOR.»
Depois da passagem do ano, regressou a Madrid, com a mulher: «Os meus nervos estão à beira de se romper… Vamos voltar às dificuldades habituais. Mesmo assim mantenho a esperança de te ver amanhã, com o pretexto (que já sei que dificilmente será aceite) de que tenho de ir a um jogo com uns amigos.» O ano de 1965 arrancou com a sua sucessão de jantares, cocktails, recepções, banquetes e bailes, onde o avô tinha de ir, com a avó ao lado. Sempre a sorrir, como se a vida dele não estivesse mergulhada num tumulto. O mundo também estava a alterar-se, mas tão suavemente que ele, se calhar, nem dava conta.
Apesar de ir estando com a Kit nessas furtivas noites, isso não era suficiente. Parece que só nas cartas se conseguia libertar do sufoco em que vivia: «Gosto muito de ti, mas mesmo muito, muito!»; «Daria um ano da minha vida por um minuto na tua companhia, por uma notícia tua, por algo que me desse a segurança de que pensas em mim»; «Que partidas a vida nos prega! Tantos anos sem te encontrar e agora tantos obstáculos à concretização do amor perfeito. Mas já sabes que continuarei à espera, contra todos os obstáculos, com a clareza da consciência e a força da loucura, com a firmeza da maturidade e o ardor de uma nova juventude que tu mesma me deste.»
A família, naturalmente, foi-se apercebendo. O seu filho pintor, que vivia na embaixada, escreveu ao meu pai a contar como estava a situação: «Entre nós é que me parece não valer a pena guardar segredos já que, na ignorância, não se pode saber como tratar uma pessoa ou simplesmente ajudá-la. O problema dos velhotes refere-se ao facto do affaire do Pai. Aliás, já o confessou, embora não tenha dito com quem. Temos no entanto a certeza de que é a “americana”. Claro que como tu dizes isto há-de acabar mais tarde ou mais cedo, a bem ou a mal. O que agrava a questão é a inoportunidade da mãe e o “mau comportamento” do pai – perdeu completamente a cabeça. Vem jantar ou almoçar poucas vezes, muitas noites não dorme em casa, nem se importa connosco, criados, etc…. que evidentemente já “toparam” o que se passa. Quando está a mãe é quase pior porque não tem o mínimo tacto. Não o larga, faz-lhe cenas, perguntas… Por isso, parece-me que seria conveniente que vocês a conservassem aí [em Lisboa] o mais tempo possível para evitar que o pai leve a coisa ao extremo.» Ela já sabia; só não sabia quem era.
“De nada vale o esforço de convencer ou de explicar ou de fazer pensar desta ou daquela maneira, como se tratasse de resolver um problema de matemática ou de lógica. Na verdade, o problema é de sentir”
A convulsão amorosa foi tal que ele decidiu escrever à mulher. Tinha passado um ano desde aquela fotografia com a etiqueta «Fim do último episódio». Eis a carta: «Madrid, 15 Março 65, Minha querida Piinha, As nossas situações ou posições – sua e minha – são muito diferentes, como muito diferentes são os nossos feitios e as nossas sensibilidades. Claro que não pretendo dizer com isto que entre nós não haja qualquer semelhança e que, portanto, tudo seja diferente; e menos ainda quer dizer que eu tenha sido sempre assim. Nenhuma dúvida tenho, por exemplo, em reconhecer que hoje não sou exactamente o que era há 10 ou há 20 anos. Só Deus e eu sabemos quanto lutei e quanta amargura me tem causado o não ter conseguido vencer-me. Em tudo o que se vem passando a inteligência, o raciocínio, mesmo a experiência, têm um papel mínimo. Por isso são absolutamente inúteis ou improcedentes os argumentos, os raciocínios e – como consequência – as discussões. Trata-se da sensibilidade e de sentimentos, muito mais do que de factos e de razões; portanto, de nada vale o esforço de convencer ou de explicar ou de fazer pensar desta ou daquela maneira, como se tratasse de resolver um problema de matemática ou de lógica. Na verdade, o problema é de sentir.» (…)
Surge o “caso Delgado”
No meio desta tormenta, surgiu o «caso Delgado». O avô estava num banquete oficial, oferecido por um ministro espanhol, quando o chamaram à parte por causa de um assunto urgente, que ele imediatamente relatou, por telegrama «urgente e secreto», para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa: «Descoberta por pastor (guarda da propriedade) de dois cadáveres, um de homem, outro de uma senhora, ainda jovem, enterrados a cerca de 7 quilómetros de Badajoz. Cadáver homem parece ser de ex-general Delgado em virtude reconhecimento de um anel com as iniciais HD, um dente de ouro e uma palmilha ortopédica. Senhora devia ser a secretária que o acompanhava quando entrou em Espanha em Fevereiro. Os dois cadáveres mostram evidentes sinais no crânio de ter sido violenta a sua morte e obtida com objecto contundente. Estavam semienterrados em duas covas cuja profundidade era de pouco mais de meio metro e encontravam-se em adiantado estado de decomposição e em parte devorados por animais selvagens. Pormenor de interesse o facto de ter sido encontrada cal no local da sepultura de H. Delgado, o que denota o propósito de fazer desaparecer mais rapidamente os seus restos.» O meu avô conhecia-o bem dos tempos da Mocidade Portuguesa, mas gradualmente tinham-se afastado. Havia até a história do encontro num semáforo, em Lisboa, que o meu avô costumava contar com graça. Pararam dois carros lado a lado. Num, ia ele e, no da outra faixa, Humberto Delgado. Olharam um para o outro e o general, vendo quem era, fez o cumprimento ao contrário: em vez de tirar o chapéu, como o tinha no banco ao lado, pô-lo na cabeça, com visível irritação.
[Veja as filmagens de Salazar feitas por Luís Pinto Coelho]
Espanha, como seria de esperar, ficou furiosa por lhe ter aparecido o cadáver de um opositor político «em casa». O meu avô geriu o assunto com a maior discrição. A família nem se apercebeu do impacto que o assassinato teve. A 15 de Junho de 1965, escreveu a Salazar: «O oficial da Guardia Civil disse ao nosso adido que H.D. era subsidiado, quase de certeza, por certos serviços secretos americanos e que isso, uma vez conhecido dos comunistas, os pode ter levado a considerar que ele fazia jogo duplo e, portanto, era necessário liquidá-lo. Por outro lado, disse também se pode admitir que o móbil do crime tenha sido o roubo – exclusiva ou conjuntamente – no caso de os assassinos saberem, ou suporem, que H.D. andava naquelas paragens para receber o “subsídio”. Mais disse o oficial espanhol que estas autoridades estão absolutamente certas de que, na morte de H.D., não houve intervenção de qualquer entidade responsável portuguesa, mas que isso não permitia, só por si, excluir, em absoluto, a intervenção de algum “elemento” inferior, agindo por iniciativa e zelo próprios. Por último, também aquele oficial não deixou de dizer que tem sido pouca ou nenhuma a colaboração que a Polícia portuguesa tem dado aos investigadores espanhóis.»
Salazar respondeu-lhe: «O nosso interesse é que as autoridades espanholas possam levar as investigações até à descoberta do crime e dos criminosos. Sabe-se que H.D. vinha à fronteira hispano-portuguesa para se ocupar com dirigentes revolucionários portugueses dos actos de subversão em que pensava. Sabe-se ter anunciado aos seus consócios que, se não quisessem acompanhá-lo a lançar imediatamente a revolução, então se entregaria às autoridades portuguesas e diria tudo. Sabe-se que estas afirmações levantaram o maior alvoroço e lhe foi negado o direito de vir entregar-se em Portugal às autoridades. Desde esse momento H.D. lavrara a sua sentença de morte. Noto com estranheza que os comunistas, tendo feito muito barulho à volta do assassinato e acusando por várias vias Portugal e Espanha de serem responsáveis pelo assassinato de H.D., se calaram de há algum tempo para cá, como quem não tem interesse na descoberta dos criminosos ou não a deseja mesmo. A experiência que temos aqui nas últimas dezenas de anos é que ninguém pode impunemente conluiar-se com os comunistas e depois abandoná-los ou traí-los. E foi o que aconteceu neste caso. Gente de Portugal? De Espanha? Da Argélia? Todos em conjunto? Não sabemos.»