David Cameron, ao convocar o referendo desta semana no Reino Unido, abriu a caixa de Pandora.

Com efeito, a escassos dois dias do referendo e de acordo com as últimas sondagens, já realizadas após o brutal e inqualificável assassinato da deputada Jo Cox, deparamos com um país partido ao meio. Haverá, é certo, ainda alguma vantagem para o remain, mas a percentagem de indecisos, determinantes nestas ocasiões, permanece extremamente elevada.

Ora tal circunstância leva-nos a pensar no porquê da sua convocação, bem como no próprio papel dos referendos, tal como muitos plebiscitos de má memória, nas decisões políticas de cada país.

Os referendos e os plebiscitos correspondem, hoje, aos velhos anseios dos que, como Jean Jacques Rousseau ou Thomas Paine, sempre encontraram vantagens numa democracia direta, onde o povo, sem o véu da representação, poderia decidir o seu destino.

Só que, tal como o passado várias vezes nos ensinou, em grandes territórios e sobre questões intrínsecas ao respetivo funcionamento de um Estado, quer a democracia direta quer os seus instrumentos, como o plebiscito e o referendo, são formas de consulta popular muito perigosas. Quase sempre conduzindo ou à ditadura de um qualquer autocrata, ou ao domínio de uma assembleia ou, ainda, no caso de uma democracia consolidada, à sua potencial ingovernabilidade. Isto é, mesmo em democracia, há perguntas que não se podem fazer.

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Imaginem-se os resultados de referendos onde se perguntasse se os cidadãos querem continuar a pagar impostos, se concordam com a reintrodução da pena de morte, com a expulsão dos estrangeiros, com o cumprimento do serviço militar, ou, em última instância, com o fim dos parlamentos, tal como os conhecemos.

Não sabemos quais seriam as respostas as estas perguntas, mas, certamente, que poderíamos ter algumas surpresas desagradáveis que poriam em causa a nossa atual e amadurecida conceção de Estado de Direito, o nosso entendimento dos direitos fundamentais ou a sustentabilidade financeira do nosso modelo de bem-estar social.

Assim sendo, compreende-se mal a atração de David Cameron pelo desconhecido. Descortina-se mal a sua aceitação das consequências inesperadas da resposta dos seus concidadãos ao referendo em causa. Aliás, esta mesma atração pelo desconhecido levou o primeiro-ministro britânico, mostrando a sua fragilidade como líder, a aceitar a liberdade de campanha e, consequentemente, de voto, aos membros do seu partido, incluindo influentes membros do seu governo.

Mas mais inesperada ainda é a circunstância do refendo em causa ser lançado numa fase crítica do caminho europeu. Num momento em que a América, à beira de um novo ciclo político, se preparava para sair da Europa. Numa altura em a que a Rússia se prepara para redefinir o seu posicionamento face à Europa, a ela regressando em força E ainda, quando, quem nunca cá esteve, como é o caso da China, aí está a chegar de mansinho, reconstruindo uma nova rota de seda. Neste último caso, não para lá fazer chegar o Marco Polo, mas sim para trazer para cá os seus produtos, o seu investimento estratégico e, em última instância, aqui impor o novo rosto do Império do Meio.

Dir-se-á que este referendo não será novidade, pois o mesmo Reino Unido também levou a cabo um referendo para decidir entrar na Comunidade Económica Europeia. Ou ainda se poderá argumentar que também em muitos outros países europeus houve lugar a referendos para decidir sobre aspetos específicos do processo de integração Europeia, como aconteceu, por exemplo, aquando da ratificação do tratado constitucional ou de outros instrumentos jurídico-políticos da atual União.

A verdade, porém, é que esta consulta é inédita, uma vez que nunca se perguntou a um país se quer sair da União e mais inédita ainda, sendo a pergunta colocada por quem se diz defensor da permanência do seu país na União.

Por isso se entende estarmos perante uma das tais perguntas que não se devem fazer. Estamos perante um caso de um líder que, para defender o poder no seio do seu partido cede ao populismo. Talvez para conseguir evitar o crescimento dos extemos eleitorais, mas arriscando pôr em causa, não só as suas ditas convicções, como o interesse da União de que faz parte.

Ou estamos apenas perante mais um exercício de puro cinismo político, infelizmente cada vez mais comum nos nossos dirigentes, na tentativa de sobreviver no poder (embora Cameron já tenha anunciado, também um pouco estranhamente, que se quer retirar depois do atual mandato). Ou trata-se apenas de um ato pouco lúcido, desmedido, subjugado à famosa Hubris de que falavam os clássicos gregos e que afeta tantos decisores, sobretudo após mandatos mais longos. Ou seja, com o decurso do tempo o exercício do poder começa a cegar, a ensurdecer os políticos perante a realidade, levando a que apenas se ouçam a si próprios ou aos seus colaboradores mais fiéis, aos que só lhes dão as boas notícias (para alguns esta será a verdadeira doença do poder).

Só que tal decisão, para uns, mais tática, para outros, menos lúcida ou ponderada, não seria grave se não corrêssemos o risco de, pelas suas consequências, estar a abrir uma caixa de surpresas, uma verdadeira caixa de Pandora.

O custo estimado do eventual Brexit, será económico e financeiro mas, fundamentalmente, político e geoestratégico, para os dois lados do canal da Mancha: poderemos vir a ter uma União Europeia ainda mais frágil, sem confiança e sob forte ameaça de nacionalismos etnocêntricos, identitários e radicais, seus desagregadores; e um Reino Unido mais isolado e com um papel mais incerto, porventura, mais reduzido, num mundo de múltiplas polaridades.

Ao convocar este referendo, David Cameron não só não conseguiu apaziguar e unir o seu partido, nomeadamente, refreando o candidato ao seu lugar, Boris Johnson, como poderá acabar por desmembrar o seu próprio país e, conforme já tive ocasião de escrever neste local, acabar por abrir a porta a uma nova ordem europeia.

Ainda assim, face à aparente adversidade, valerá a pena continuar a manter a fleuma, esse grande apanágio dos britânicos. Pois como Barack Obama afirmou recentemente, aquando da sua última visita à Europa, “a União Europeia é um dos maiores sucessos económicos e políticos da história moderna”. Ou, apelando aos clássicos, recordar que na mitologia grega, Pandora, a primeira mulher, a quem foi oferecida a lendária caixa, ao abri-la, deixou sair os males que viriam a pesar sobre a nossa terrena humanidade. Todavia, ao abrir essa mesma caixa, nela permaneceu a esperança…

Professor universitário