Foi na sexta-feira passada, poucos terão reparado. Numa das muitas entrevistas que deu a propósito do primeiro aniversário do seu Governo, António Costa repisou a ideia de que todos os problemas do sistema financeiro são culpa do anterior Governo, e concretizou: “Por sua responsabilidade, destruiu um banco como o Banco Espírito Santo”.
Escusam de esfregar os olhos para ver que aquilo que leram foi mesmo o que António Costa disse: não só foi, como não o desmentiu nem corrigiu (e recomendo que leiam o Fact Check que o Observador realizou logo nesse dia). Ou seja, num daqueles momentos raros em que deixou escapar o que realmente lhe vai no fundo do coração, o primeiro-ministro disse-nos que a destruição do BES não foi obra de Ricardo Salgado e da restante liderança do Grupo Espírito Santo, não decorreu de actos de gestão não apenas inconscientes como provavelmente criminosos e que estão por isso a ser alvo de investigação judicial. Não, nada disso: para António Costa foi Passos Coelho que destrui o BES. Como? Não explica. Mas o que sabemos é que Passos Coelho apenas teve uma intervenção decisiva nesse processo: no momento em que disse não a Ricardo Salgado quando este lhe pediu para pressionar a Caixa Geral de Depósitos a fazer um empréstimo de milhares de milhões ao GES – um empréstimo como aquele que levou para o fundo a Portugal Telecom.
Já o escrevi preto no branco e volto a repeti-lo: se Passos Coelho tivesse feito tudo mal nos seus quatro anos de governação, aquele “não” ao antigo “dono disto tudo” teria sido suficiente para eu lhe estar agradecido. Agora é altura de dizer, também preto no branco: aquela frase de António Costa é aterradora pelo que revela sobre os seus instintos como governante, e é também profundamente reveladora sobre o porquê de o processo da Caixa Geral de Depósitos estar submerso na trapalhada em que está.
Ter “salvo” o BES para este salvar o GES, pelo que sabemos hoje sobre o imenso buraco do Grupo Espírito Santo, teria sido fatal para a Caixa (como foi para a PT) e teria custado aos contribuintes uma quantidade indefinida de “BPN’s”. Ter “salvo” o BES teria representado também prosseguir com o tipo de interferências políticas que, ao longo de décadas mas com o seu apogeu nos anos de José Sócrates, fizeram com que a Caixa desse empréstimos ruinosos e, cúmulo dos cúmulos, perdesse centenas de milhões em empréstimos destinados a permitir um assalto ao poder num banco privado, o BCP, sob o alto patrocínio do “animal feroz”.
O que sabemos dos resultados da comissão de inquérito parlamentar ao caso BES (cujas conclusões o OS votou favoravelmente), o que já começámos a perceber da comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos e aquilo que podemos ler em livros recentes e bem investigados como A Vida e Morte dos Nossos Bancos de Helena Garrido não permite senão uma leitura: nos anos que precederam o pedido de ajuda externa e a intervenção da troika bancários, empresários e políticos envolveram-se numa “grande farra de dívida” que teve o seu paroxismo nos tempos de negação da realidade de 2009, 2010 e 2011.
Mais: quando se negociou o resgate com a troika (e quem o negociou ainda foi um governo do PS, o de Sócrates) não se conseguiu um pacote financeiro que permitisse limpar definitivamente o nosso sistema financeiro (como bem se explica nesse mesmo livro, pp. 81 a 91). O resultado (pág. 98) foi que “o único modelo de abordagem do problema que ficou disponível foi o de ir limpando as perdas à medida que elas iam aparecendo”.
No que diz respeito à Caixa Geral de Depósitos, os últimos anos (como se pode ler a pp. 157 a 166) foram em boa parte ocupados a afastar o banco público da multiplicidade de negócios ruinosos para que fora empurrado por sucessivos governos, a resistir a pressões para entrar em novas megalomanias (por exemplo: a PT e Ricardo Salgado tentaram tudo para que a Caixa entrasse, enterrando mais umas centenas de milhões, no desastre da fusão com a brasileira OI, o que só não aconteceu porque a administração de então se opôs e Pedro Passos Coelho também disse não, pp. 157 a 159). No final o balanço de Helena Garrido é claro: “estes últimos anos da Caixa interromperam uma década e meia de captura do banco pelos interesses políticos dos governos que protegeram empresários e negócios numa lógica de poder”.
Esta análise é em tudo contraditória com o discurso político do actual Governo quando surgiu a necessidade de mobilizar mais de 4 mil milhões de dinheiro público para a CGD. Este manteve-se fiel ao guião de que tudo o que estava mal era fruto dos últimos quatro anos, um guião que, percebemos agora, corresponde ao pensamento profundo de António Costa, ao que realmente sente o PS e está na massa do sangue dos socialistas: a banca é um terreno onde os governos devem intervir, tal como bancos amigos – como foi durante muitos anos o banco de Ricardo Salgado – devem ser salvos, custe isso o que custar aos contribuintes.
Mais: ao optar por uma gestão política confrontacional do dossier da Caixa, o Governo cortou deliberadamente as pontes para qualquer solução que pudesse ter um apoio mais alargado. Talvez o sinal mais claro do que estava para vir foi a intervenção, no início de Julho, de Mário Centeno na Comissão de Economia e Finanças da Assembleia quando falou de um “desvio de três mil milhões” na CGD. O tom da sua intervenção foi tão incendiário, a recusa a prestar esclarecimentos tão radical, que depressa o “desvio” se transformou em “buraco” e o alarme propagou-se como fogo numa pradaria ressequida, levando a que fossem recebidos no Banco de Portugal telefonemas alarmados de outros bancos centrais a perguntar o que se passava. Confrontado com a gravidade das suas declarações pela oposição, Centeno não teve pejo em dizer que se tratava de uma declaração “política”, sem perceber que estava a lidar com matéria explosiva.
É neste quadro que tudo o que tem a ver com a Caixa passa a ser tratado também pela oposição, e pelo PSD em particular, como arma de arremesso política, até porque a sucessão de inabilidades e disparates que acompanharam o processo de escolha e nomeação da nova administração lhe proporcionaram essa oportunidade.
Agora que António Domingues acabou por se demitir – e só tenho pena que tenha levado tanto tempo a perceber o cinismo e a duplicidade daqueles que o desafiaram para a CGD, tal como só lamento o grau de hipocrisia de quem sabia há muitos meses das condições colocadas pelo gestor (António Costa) e, mal percebeu que o tema era explosivo, tirou o corpo fora fingindo que nada era com ele –, é curioso ver lamentos sobre a “traição” do Bloco de Esquerda, como os de Paulo Trigo Pereira.
Na verdade as dificuldades agora existentes não deviam surpreender ninguém. A estratégia do Governo e de António Costa foi sempre a de ostracizar e demonizar a oposição, acreditando porventura que à sua esquerda não lhe levantariam problemas de maior. Devia ter percebido, logo em Dezembro do ano passado, com o Banif, que não seria assim. Aprendeu agora com a Caixa, e falta saber o que isso custará a nós todos.
Não deve de resto alimentar ilusões. A sombra tutelar do Bloco, Francisco Louçã, já veio dizer que nas decisões sobre a banca o Governo não deve contar com seguidismo, pois elas não estão abrangidas pelos compromissos da maioria, sendo necessários “novos acordos” não só relativos à CGD, como ao Novo Banco (que o Bloco quer nacionalizar) e ao chamado “banco mau”. Ou seja, anunciam-se novas divisões no bloco de apoio ao Governo no que respeita ao sistema financeiro, dossier que continua a ser um dos mais críticos da governação.
Será de resto curioso seguir os episódios dos próximos capítulos se se confirmar que é Paulo Macedo o escolhido para presidente da Caixa. Vão Catarina e Jerónimo aceitar de bom grado uma figura importante da anterior maioria, o ministro que acusaram quatro anos a fio de estar a destruir o Serviço Nacional de Saúde? E poderá Costa manter o seu registo confrontacional com PSD e CDS no dossier Caixa quando escolhe para a dirigir um ex-ministro da anterior maioria?
Já todos vimos porcos a andar de bicicleta e muito sapo a ser engolido, mas mais do que nos divertirmos com os futuros números deste circo em que estamos mergulhados, é bom tomarmos consciência de duas coisas, ambas centrais para avaliar o que se vier a passar neste processo. A primeira é que a reforma do sistema financeiro devia estar a ser feita na base de um grande consenso entre os partidos europeístas, e não com base nos equilibrismos necessários para manter o apoio de partidos (PCP e Bloco) que têm deste sistema uma visão em tudo oposta às regras europeias e ao funcionamento de uma economia de mercado. A segunda é que essa reforma está a ser dirigida por alguém que não foi capaz de esconder a sua nostalgia pelo tempo em que o banco de Ricardo Salgado medrava à custa de cumplicidades governamentais e fraudes internacionais.
Por mim, este é um quadro não dá para dormir descansado. Tal como uma andorinha não faz a primavera, dois homens competentes – António Domingues e Paulo Macedo – não garantem só por si que o ADN do sistema deixa de ser o que é. Como tudo o que se passou nos últimos meses tem vindo a demonstrar à exaustão.
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