Cuidado porque vou dizer as palavras proibidas: revisão constitucional. Continua bem? Estranho. É que a avaliar pelo que dizem os políticos a expressão mata, no mínimo morde. É um facto: a revisão constitucional virou um tabu político e isso aconteceu porque estes interiorizaram (quase sem exceção) um provérbio brasileiro, que já virou música e até é citado no plenário por António Filipe, do PCP: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. E chegados aqui, vale a pena perguntar: mas faz sentido? Não, não faz.

Vale a pena começar por estas duas ideias para uma revisão constitucional, justificadas pela necessidade de “reforço dos instrumentos favoráveis à estabilidade financeira”. Fixe a expressão e veja as propostas:

  1. “Em primeiro lugar, permite-se ao Governo associar a solicitação de um voto de confiança à aprovação da lei do Orçamento ou de outra proposta com relevância orçamental, para que a Assembleia da República conheça, formalmente, a consequência política de uma eventual rejeição de tais propostas em matéria financeira.”
  2. “Em segundo lugar, alteram-se as regras sobre a duração da legislatura, de modo a que as eleições legislativas ocorram em maio ou junho do último ano da legislatura, evitando-se a atual situação em que a realização mais tardia das eleições remete forçosamente a disponibilidade de um novo orçamento para meados do ano a que ele deve respeitar.”

As duas fazem inteiro sentido – e podem fazer mais ainda quando antecipamos um início de legislatura complexo, onde pode ser difícil encontrar uma maioria sólida, ainda em tempo de constrangimentos financeiros. Agora um desafio: adivinha quem o propôs? O PS, mais precisamente um grupo de socialistas liderado por Pedro Silva Pereira, o ministro da Presidência de José Sócrates. Ano: 2010. O mesmo ano em que o PCP propôs “eliminar a obrigatoriedade de referendo para a regionalização”, ou mesmo que os mandatos do Procurador-Geral da República, do Provedor de Justiça e do Presidente do Tribunal de Contas fossem fixados em seis anos, não renováveis; ou quando o Bloco sugeriu a descida da idade mínima de votar para 16 anos.

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Foi mais ou menos nessa altura, também que Luís Amado se atreveu a propor uma regra de ouro na Constituição, fixando a obrigatoriedade de limitar o défice e dar garantias de estabilidade financeira aos credores. Sócrates mandou-o passear (era ele MNE, é bom de ver) – e até o PSD e o CDS fingiram que não era nada com eles.

Passaram apenas cinco anos desde que estas propostas foram feitas.

E agora mesmo, apesar de todos os tabus, os socialistas admitem que pode fazer sentido fazer alterações “cirúrgicas” à Constituição, nas palavras por exemplo do deputado Vitalino Canas. Ainda este fim de semana, o Presidente do PS, Carlos César, falou dela para dizer que é preciso reforçar a autonomia das Regiões dos Açores e Madeira. E há escassas semanas foram os socialistas quem entregaram um projeto na Assembleia que, na versão desejada, implicava tocar nela (a CRP) para dar novo poder ao Presidente da República na nomeação do governador do Banco de Portugal. Talvez não seja afinal tão despropositado falar da constituição, certo?

E por que não? Um breve regresso a 2010 permite-nos perceber por que razão a Constituição se tornou um tabu. E não é preciso ser adivinho, nem ter especial memória sobre o que se passou: Pedro Passos Coelho chegou à liderança do PSD com um projeto na mão. O processo não foi brilhante, mas não foi isso que o derrubou – foi o facto de estarmos em cima de eleições legislativas, que todos sabiam que iriam acontecer em breve. José Sócrates pegou nele e fez o mote para uma campanha política. Passos ficou tão preso ao falhanço mediático que nunca mais se atreveu a pegar nele. Aqui, anote, não houve procura de consensos: a Constituição foi apenas um (ao caso, dois) projeto político.

Depois veio o ajustamento. E a Constituição foi uma arma de arremesso permanente (muitas vezes única) contra o Governo e contra a troika. Ou do Governo, na procura de uma liberdade que não teve.

Mas é possível que o nosso tabu constitucional seja anterior: a última grande revisão constitucional foi feita em 1997, com os votos do PS de Guterres, mas com manifesta contrariedade nas almas socialistas; a anterior foi feita nos tempos de Cavaco Silva, numa batalha pela abertura da economia que deixou marcas também à esquerda. Não, não creio sequer naquela velha tese de que a esquerda é imobilista e a direita reformista – olhando para uns e para outros, há conservadores em ambos os lados do plenário. Mas é um facto que uma Constituição feita à esquerda, como a nossa de abril de 1975, terá sempre maior resistência à mudança em casa do que fora dela.

Mas lembre-se disto: nestes 40 anos, a Lei Fundamental foi revista várias vezes. Foi em diálogo, concertação e negociação demoradas – e sempre longe dos atos eleitorais. Creio que, olhando para trás, poucos se dirão arrependidos disso.

E agora pergunto: alguém tem uma vaga ideia sobre o que pensam os portugueses sobre o assunto? Aqui vai uma pista:

gráfico

 

Os dados são de do “Inquérito 40 anos do 25 de Abril”, publicado apenas há um ano pelo ICS. No documento, pode ler-se a conclusão:

“40% dos inquiridos considera que a Constituição tem de ser alterada para cumprir os compromissos financeiros e outro tanto que ela está desadequada da realidade. (…) Estes dados mostram que o Governo, que tentou colocar na agenda pública a questão da revisão da Constituição, não foi eficaz. O debate está por fazer, por politizar. No fundo, não se levou adiante essa vontade de revisão do ponto de vista do combate político.

Talvez faça sentido, portanto, discutir. Mas, se não for pedir muito, não discutir como fez um ilustre político, num muito recente debate. Dizia ele que é preciso fazer uma revisão constitucional, até porque “não podemos estar numa posição estática”. Mas, acrescentava,  “neste momento concreto julgo que não podemos ser inocentes: o que está na mesa na revisão Constituição é para pior e não para melhor. (…) Não me parece que seja o melhor momento para estarmos a falar disso”, disse. Quem? Sampaio da Nóvoa, candidato a Presidente da República.

O argumento não faz sentido. O tabu não faz sentido. Mesmo nenhum. Pela simples razão de que os pais da nossa Constituição tiveram a feliz ideia de só permitir fechar uma revisão constitucional com os votos de dois terços dos deputados.

Repare na sabedoria: num processo destes, nunca haverá vencedores e derrotados. Ou a negociação se faz numa real procura de consensos, ou não se faz de todo. Mas talvez esse seja, afinal, o maior dos tabus que temos que encarar de frente: não a mudança de uma Constituição, mas a coragem de procurar consensos. Esse desafio temos de vencer agora. Mais tarde será tarde demais.