Um dos detalhes mais fascinantes do caso da “lista VIP” foi o título que o nosso director David Dinis deu à sua opinião sobre o assunto aqui no Observador: “esta coisa séria da lista VIP”. Imaginemos o uso da expressão noutros contextos: “esta coisa séria da crise grega”. Pareceria provavelmente redundante. Mas o acesso indiscreto e ilícito aos dados dos contribuintes, que os dirigentes do fisco terão reconhecido não conseguir limitar, a não ser em benefício de umas poucas de figuras públicas — é isso uma coisa séria?

A crer no debate público, a seriedade do caso parece depender da possibilidade de um secretário de Estado se demitir. Em Portugal, pelos vistos, é essa medida da importância e da gravidade de qualquer coisa: a probabilidade de comprometer um membro do governo. De contrário, a coisa faz parte daquilo a que todos, enquanto cidadãos, temos de estar habituados. Por isso, consumada a demissão ou o vexame do governante, logo a coisa, por pior que seja, desaparece do debate. Basta a resignação de um secretário de Estado para o bem público ficar saciado. Não somos, de facto, uma república muito exigente.

Esta caso da “lista VIP” lembrou-nos que o Estado português tem pelo menos uma coisa em comum com Polichinelo: a incapacidade de guardar um segredo. Dito isto, pode continuar a não parecer uma coisa séria. Não será o sigilo uma relíquia do passado, impossível de honrar na era dos “leaks” e dos “hackers”? Não estará a solução para a falta de confidencialidade em abolir a confidencialidade?

Não e não. Em primeiro lugar, porque é a lei que manda que haja segredo. A um Estado que não respeita as leis, pode-se chamar muita coisa, mas não um Estado de direito. Em segundo lugar, porque é possível guardar segredo: bancos, escritórios de advogados, ou empresas, ao contrário do Estado, não deixam escapar tão facilmente a informação confidencial de que dispõem. E em terceiro lugar, porque um Estado sem segredo, com o que o Estado hoje sabe sobre cada um de nós, significaria a abolição oficial da privacidade em Portugal, e não há liberdade sem o direito de ser deixado em paz (“the right to be let alone”, na célebre definição de Warren e Brandeis). Um Estado indiscreto é uma ameaça à liberdade e também à justiça.

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Dir-me-ão: mas não tem sido a violação do sigilo nos serviços públicos uma fonte de informação relevante e um instrumento contra os abusos e as corrupções dos poderosos? Bem, o desrespeito da confidencialidade não parece ter sido até hoje um grande dissuasor do abuso e da corrupção, como sugerem casos muito recentes. Pelo contrário. Mais do que aumentar a transparência, as chamadas “fugas” criam uma confusão confortável para os prevaricadores, porque nunca é fácil determinar se a informação assim obtida é genuína ou qual o seu significado exacto. A violação do sigilo não pode, por isso, compensar a ausência de um Estado bem ordenado, capaz de detectar e investigar abusos e corrupções, e punir os responsáveis através do exercício regular da justiça.

Muito provavelmente, a inconfidência é menos uma auxiliar da investigação jornalística ou cívica, e mais ela própria uma fonte de toda a espécie de abusos e de corrupções, ao gerar assimetrias ilícitas de informação, por exemplo nos negócios ou nos litígios privados onde uma das partes tenha beneficiado da “curiosidade” de algum funcionário acerca dos dados da outra parte. E há ainda a possibilidade de governantes sem escrúpulos recorrerem ilegalmente aos dados de que os serviços públicos dispõem para pressionar ou chantagear cidadãos. É através deste tipo de incúrias que as tiranias se insinuam. E é por isso que esta é uma coisa muito séria, e não apenas porque a oposição pede mais uma vez a demissão de um secretário de Estado.

Há razões, para além do direito à privacidade, que justificam a reserva de informação no Estado. Mas não devemos ficar-nos pelo Estado. Porque se de um lado está um Estado que não cumpre a lei, do outro parece estar uma sociedade que não exige o cumprimento da lei, e que acha tudo legítimo, desde que possa ser usado contra alguém visto como poderoso. É como se a exposição e a humilhação desordenadas tivessem substituído o escrutínio e a justiça.

Em Portugal, parece às vezes haver dificuldade em distinguir entre democracia e o velho carnaval que permitia aos lacaios, um dia por ano, troçar dos seus senhores. Mas o carnaval, mesmo quando temporariamente inverte hierarquias ou derruba algum poderoso, não é a democracia. É apenas o carnaval.