Vivemos há um mês no país dos cenários. Subitamente, tudo se tornou possível. Pela primeira vez, a democracia portuguesa pode ser governada por quem perdeu as eleições. Para chegarem ao poder, os derrotados de 4 de Outubro prestaram-se à mais extraordinária ginástica: António Costa esqueceu o seu precioso plano Centeno, o BE rifou a intransigente oposição ao Tratado Orçamental, e o PCP pôs no sótão a sua implacável campanha contra o euro – em conjunto, renegaram todas as propostas e bandeiras com que pediram votos e convenceram os eleitores. Quem votou no PS porque era um “partido do centro”, vê-o agora a perfilhar as bolas que o BE e o PCP lhe atiram; quem votou no BE e no PCP porque eram “contra tudo”, vê-os agora a aceitar tudo. O poder corrompe, e o poder de uma maioria parlamentar forjada no desespero e no cinismo da derrota, corrompe muito mais.
António Costa transformou um dos maiores fracassos da política portuguesa numa vitória: é como se D. Sebastião, depois de perder em Alcácer-Quibir, tivesse reaparecido como sultão de Marrocos. Ora, o que custa, nestas coisas, é a primeira vez. Uma golpada nunca é a última golpada. Qual é a próxima? O PCP e o BE vão “entalar” o PS? Ou é Costa quem vai “entalar” o PCP e o BE? As pensões e os salários sobem mesmo, ou isso é apenas outro embuste, para cair em Janeiro, a pretexto dos “mercados” e da “Europa”? Manter-se-á Costa fiel aos seus parceiros de ocasião, ou tentará mudar de montada e obrigar o PSD e o CDS, com a ajuda de Bruxelas e do próximo presidente da república, a assumir a “responsabilidade” de lhe viabilizar o governo? As esquerdas serviram-lhe para chegar ao poder; vai a direita servir-lhe para lá ficar? Ninguém sabe. Nada, a partir de agora, é impossível.
Quem pensa que em Portugal entrámos numa época de polarização e de ideologia, está talvez enganado. Entrámos na época do golpismo parlamentar e da confusão ideológica. O perigo não é a guerra civil, mas o apodrecimento do regime através da quebra de todas as regras e da degradação de todos os projectos. A política desligou-se da sociedade. A velha regra do vencedor das eleições governar tinha uma razão de ser. Não era só permitir governos minoritários num sistema que dificulta maiorias absolutas. Era mais do que isso: era manter alguma relação, mesmo que esforçada, entre o voto e as soluções de governo. Quando, a meio da noite eleitoral, os resultados ficavam definidos, o eleitor podia ir para a cama, porque já sabia quem iria ser o primeiro-ministro. O cidadão tinha assim a sensação de haver decidido o governo. Isso acabou. A partir de agora, o eleitor vota, mas sem ideia nenhuma do que pode resultar desse voto: tudo dependerá das intrigas e das combinações dos chefes políticos.
Entre o eleitor e o governo, a oligarquia inseriu o parlamento como uma camada intermédia de enredo e de manipulação, onde os derrotados se transformam em vencedores e os partidos anti-euro reaparecem como partidos do euro. Para a metamorfose da nossa política estar completa, falta apenas a atomização dos partidos em pequenos grupúsculos imprevisíveis. Então, as possibilidades de combinação serão ainda mais infinitas e vertiginosas.
Em Portugal, a oligarquia libertou-se dos eleitores. Atreveu-se a isso, porque imagina que já não tem diante de si cidadãos, mas apenas dependentes do Estado, que pode rebaixar à vontade. No meio disto, estão os grandes interesses (empresariais, corporativos, sindicais), cuja margem de manobra vai aumentar, e os grandes ingénuos, convencidos que isto é a “democracia”, quando é apenas a podridão.