Não podemos dizer que o filme de Scorsese é uma defesa da apostasia como o seu contrário. Em primeiro lugar, porque os três jesuítas, Ferreira, Rodrigues e Garupe, perante o dilema principal do filme, optam por caminhos opostos. Se muitos têm valorizado e compreendido de forma “racional” a atitude de Rodrigues e Ferreira, os quais optam por uma fé privada, submissa ao poder em favor dos seus irmãos na fé, Garupe e restantes mártires não cedem e, antes de negarem a sua alma, oferecem o seu corpo e assumem o sacrifício com os seus irmãos. Este último é muito menos focado nesta história e até mostrado como o “arrogante-colonizador-triunfalista” e os outros os “compassivos”, mas a mestria da ficção equilibra mais uma vez os “lados”, pois a opção de Ferreira parecia “acertada” mas à pergunta de Rodrigues se este era feliz, o seu rosto denunciou tudo, uma resignação amargurada. Estes últimos, se se sentiram impelidos a salvar os seus irmãos, serviram também muito bem os interesses de uma sociedade para além da laica, que é autoritária e vê a religião como uma ameaça, como diz o Pe. Miguel Almeida, sj, num artigo do Observador. A religião sempre foi “perigosa”, como, aliás, admitiu a insuspeita Clara Ferreira Alves, no debate em que estive sobre este filme, na Fundação Oriente, no passado dia 11 de Janeiro.
E, de facto, este filme discute novamente a questão do etnocentrismo aplicado à religião. Podiam os ocidentais obrigar os orientais a abdicar dos seus princípios? Um dos autores contemporâneos que muito tem influenciado esta visão e um dos mais críticos da imposição da nossa cultura às orientais é Edward Said, com o seu “Orientalismo”, livro muito aclamado junto de uma crítica intelectual de esquerda laica. Nesse livro, o autor defende que não podemos olhar para a cultura oriental com pressupostos ocidentais. Nada de novo. Esta tese, pelo menos no que toca à religião, não contradiz a visão do cristianismo, como diz Tolentino Mendonça no seu artigo do Expresso: o Concílio Vaticano II tratou bastante da questão da relação que a Igreja tem com o mundo e entre as suas discussões e conclusões esteve o respeito pela cultura alheia no que ela tem de verdade.
A “inculturação da fé” (Vaticano II, Constituição pastoral «Gaudium et Spes» sobre a Igreja no mundo contemporâneo, n. 53-62 (Caminhos, p. 332-340)) é um termo que expressa algo de muito bonito. A Igreja revela em todas as culturas matizes e formas diferentes de olhar a fé e isso não quer dizer que se negue a mesma no seu essencial. Em Lisboa posso assistir a uma Missa mais formal e na África do Sul assisti a batuques e danças na celebração eucarística. Mas obviamente que, p. ex., o canibalismo (ou falta de liberdade religiosa) está errado em qualquer sítio e não é “cultural”, como o falacioso livro de Said parece querer argumentar. A questão do Catolicismo é o seguimento de um Homem, que se revela através dos Evangelhos, de uma tradição e de um magistério. Esse Homem que transcende todas as formas de viver, é o exemplo para “judeu e grego, escravo ou livre, homem ou mulher” (Gál., 3).
Obviamente que este livro/filme, além de um riquíssimo repositório histórico, desinstala-nos das nossas seguranças. Não se pedem juízos simplistas para dramas individuais, claro. Se me perguntassem hoje o que faria, diria que seguia a opção de Garupe, com toda a ajuda divina que isso comportasse, mas confrontado com a situação, quem garante o que seja? Munido dos meus princípios gerais, já fui confrontado tantas vezes com situações concretas de uma opção e vi que, mais do que o meu mérito, é a misericórdia de Deus que vence.
Como afirmava São Tomás, “embora nos princípios gerais tenhamos o carácter necessário, todavia à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação” (citado em Amoris Laetitia, 304). Também é verdade que a opção de Cristo não é necessariamente eliminar o mal do mundo, mas assumi-lo como seu também. E a crença numa vida eterna. Mas é preciso fé para compreender isto. É preciso um caminho. Como dizia Kierkegaard em “Temor e Tremor”, ninguém compreende como Abraão iria imolar Isaac, o seu próprio filho, mas a sua fé inquebrantável assim o ordenou. É esse salto no escuro, ainda que razoável, que é a Fé. Não tanto um ato de inteligência mas de humildade e confiança perante o “Silêncio” que fala. Paradoxos, não é? Sim, mas se Deus coubesse na nossa cabeça, não era Deus, como dizia São Tomás também.
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