O Papa Francisco instituiu, para este domingo, dia 19 de novembro, em toda a Igreja, o “Dia Mundial dos Pobres”, convidando todos aqueles que se queiram juntar a esta iniciativa, independentemente da sua fé ou pertença religiosa. O nome do dia não parece o mais feliz à partida, mas tem a virtude de questionar e desinstalar, pois chama as coisas pelo nome. “O amor não admite álibis: quem pretende amar como Jesus amou, deve assumir o seu exemplo, sobretudo quando somos chamados a amar os pobres” (§1), afirma Francisco na mensagem para este dia.
O séc. XX – estendendo-se ao início do séc. XXI – foi o século em que se atingiu o máximo de bem-estar e o máximo de atrocidades e extermínios de seres humanos por todo o mundo (terão morrido, vítimas da guerra, cerca de 200 milhões de pessoas). Os negócios mais rentáveis são a venda de armas, o “comércio sexual” e a droga. Nos anos 70, a Organização das Nações Unidas acreditava que no ano 2000 acabaria a fome no mundo; a empresa estava difícil quando, em 1989 cai o Bloco de Leste: agora sim, vamos conseguir. Mas no ano 2000 a situação estava bastante pior. Levou-se, então, a cabo o projeto do milénio, que 5 anos depois se dava por fracassado. Há pouco mais de dois anos, no dia 25 de setembro de 2015, a Assembleia Geral da ONU, aprovava a resolução intitulada “Transformar o nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, a entrar em vigor do dia 1 de janeiro de 2016. Tratando-se de um compromisso universal, assente em 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas a implementar por todos os países, a Agenda 2030 pressupõe a integração dos ODS nas políticas, processos e ações desenvolvidas nos planos nacional, regional e global.
A Declaração da ONU é muito arrojada. Basta ler parte de dois parágrafos para ficarmos com uma ideia da ambição: “3. Resolvemos, até 2030, acabar com a pobreza e a fome em todos os lugares; combater as desigualdades dentro e entre os países; construir sociedades pacíficas, justas e inclusivas; proteger os direitos humanos e promover a igualdade de género e o “empoderamento” das mulheres e meninas; e assegurar a proteção duradoura do planeta e seus recursos naturais. Resolvemos também criar condições para um crescimento sustentável, inclusivo e economicamente sustentado, prosperidade compartilhada e trabalho para todos, tendo em conta os diferentes níveis de desenvolvimento e capacidades nacionais; 4. Ao embarcarmos nesta grande empresa coletiva, comprometemo-nos a que ninguém seja deixado para trás, reconhecendo a dignidade da pessoa humana como fundamental…”.
No entanto, segundo o último relatório da FAO, juntamente com o aumento da população mundial que padece de fome crónica (com prevalência da subnutrição), o número de pessoas subalimentadas no mundo também aumentou de 777 milhões em 2015 para 815 milhões em 2016. Incrivelmente, este número que vinha a descer desde 2004, recomeçou a subir em 2014.
Quanto aos refugiados, tema esquecido nos últimos tempos, os números são astronómicos e as políticas europeias vergonhosas. Segundo a Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR), no final de 2016 havia cerca de 65,6 milhões de pessoas forçadas a deixar os seus locais de origem por diferentes tipos de conflitos – mais 300 mil do que no ano anterior. 65,6 milhões significa que, em média, 1 em cada 113 pessoas em todo mundo foi forçada a deslocar-se. E destes, muitos não sobreviveram, pois só no Mar Mediterrâneo morreram mais de 10.000 refugiados entre 2014 e 2016. Este é o panorama do mundo real e concreto em que vivemos.
O problema é que, quando falamos destas questões, tudo se resume a apresentar números. Habituámo-nos às estatísticas. Mas o números são frios e distantes. Por detrás de cada número está uma pessoa. É tão difícil fazer este percurso do número abstrato à pessoa concreta, com um rosto, uma história, uma família. Impressiona a enorme facilidade com que amamos a humanidade, e a facilidade ainda maior com que descoramos o ser humano concreto, especialmente o mais frágil e descartado.
Muitas vezes, saímos de nós próprios e somos realmente generosos. Temos até a capacidade de partilhar do que nos faz falta, especialmente se conhecemos a situação urgente a que queremos acudir. Mas tantas dessas vezes se resumem apenas a atos pontuais. Ou até nos comprometemos a dar um tempo da nossa semana ou do nosso mês para servir nalgum projeto de voluntariado, ou mesmo a despender de uma percentagem do nosso ordenado em favor dos mais desfavorecidos. Tudo isto é muito positivo. Mas está ainda tão longe da justiça.
Diz o Papa Francisco: “Não pensemos nos pobres apenas como destinatários duma boa obra de voluntariado, que se pratica uma vez por semana, ou, menos ainda, de gestos improvisados de boa vontade para pôr a consciência em paz. Estas experiências, embora válidas e úteis a fim de sensibilizar para as necessidades de tantos irmãos e para as injustiças que frequentemente são a sua causa, deveriam abrir a um verdadeiro encontro com os pobres e dar lugar a uma partilha que se torne estilo de vida” (§3).
É verdade que, embora longe de querer a exclusividade, quando olhamos para as instituições que servem as populações mais pobres, é difícil negar que muitas organizações cristãs assumem a primeira linha. Não só ao nosso lado, mas lá, nas zonas do globo onde tudo parece caótico e abandonado, é possível encontrar uma comunidade de freiras ou de missionários, consagrados ou leigos, a levar para a frente pequenas comunidades através da ajuda às necessidades mais básicas de nutrição ou de saúde, de educação ou formação profissional.
Mas se isto é verdade, também não podemos negar que, ao mesmo tempo, se o projeto cristão representa uma falha, ou até mesmo uma fraude, para tanta gente, ela não se deve ao Evangelho nem a Jesus Cristo. Deve-se em grande medida aos cristãos. Não conseguimos ser críticos do sistema injusto em que vivemos, não temos a coragem de alterar real e radicalmente as nossas vidas, não assumimos a partilha como um estilo de vida, como refere o Papa. Não fazemos do pobre um irmão. Damos-lhe coisas, mas não o tratamos como um da nossa família. Falta passar da solidariedade à fraternidade alargada.
Nem é necessário referir este ou aquele cristão de missa dominical que, afinal, se revela um patrão injusto ou corrupto; nem sequer falar deste padre ou daquele bispo que vive luxuosamente enquanto prega a justiça e a caridade. Casos e pessoas dessas sempre as haverá em todas as organizações e famílias. Falo do comum dos cristãos, da massa, das famílias, das comunidades cristãs. É verdade que “trazemos, este tesouro em vasos de barro, para que se veja que este extraordinário poder é de Deus e não é nosso” (2Cor 4,7), mas podemos fazer mais e melhor.
A bíblia fala muitas vezes de pecado, mas não por um afã moralista. Fá-lo por dois motivos: porque o pecado está muito ligado à dor e ao sofrimento do mundo, o que é a grande preocupação da revelação; e porque temos uma grande capacidade de mascará-lo e justificá-lo e, por isso, precisa de ser claramente denunciado e desmascarado.
No campo de concentração de Dachau, há uma fotografia impressionante. Tirada quando as primeiras pessoas entraram no campo no fim da guerra, a fotografia revela a sua expressão de horror e de culpa, como que a dizerem, “como é que nós, vivendo aqui ao lado, não fizemos nada? Não quisemos ver a realidade…” Há uma diferença entre a culpa e a responsabilidade. O facto de não termos culpa de haver fome e pobreza no mundo não nos isenta da responsabilidade que todos temos, simplesmente porque somos todos irmãos em humanidade.
Obviamente, a questão da pobreza e da injustiça é uma questão humana e não apenas religiosa. Mas na Bíblia, fonte de toda a cultura judaico-cristã, nada faz despoletar tanto a ira de Deus como a injustiça. Mesmo no Novo Testamento, as poucas vezes que Jesus fala de condenação fá-lo quase sempre neste âmbito, “porque tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, era peregrino e não me recolhestes, estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não fostes visitar-me” (Mt 25, 41-43).