1. Acontece com Angola o mesmo que com Portugal, as siglas dos partidos mais antigos pouco têm a ver com a sua substância. Em Angola, temos ainda a “Libertação de Angola” em MPLA, ou a “Independência Total de Angola” na UNITA. Angola é hoje um país soberano e independente. O seu futuro será aquilo que os angolanos quiserem. Partidos políticos, organizações da sociedade civil, jornalistas, professores, empresários, todos podem e devem contribuir para melhorar Angola. A comunidade internacional pode também ajudar sobretudo apoiando aqueles que em Angola estão do lado do desenvolvimento económico e social do país e não nos benefícios privados de uma elite. Aquilo que se questionam aqueles que de dentro ou de fora do país analisam Angola é a razão de ser de um país com tantas riquezas naturais ser ao mesmo tempo um dos países com maiores desigualdades e pobreza e estar no grupo dos países com piores indicadores de desenvolvimento humano (Banco Mundial). A resposta teórica a esta questão está no livro de Acemoglu e Robinson “Porque falham as nações?” e é simples: o desenvolvimento de um país não depende da abundância dos seus recursos naturais depende da qualidade das suas instituições. Não por acaso os países mais desenvolvidos do mundo são democracias consolidadas e muitos deles nem sequer têm significativos recursos naturais. O caminho a seguir, para se passar da libertação e da independência para o desenvolvimento só pode ser a melhoria das instituições.

2. Não se sabem ainda os resultados definitivos do escrutínio das eleições angolanas, e as previsões de resultados (que dão uma maioria qualificada ao MPLA) estão a ser contestados por alguns partidos da oposição (UNITA e CASA-CE). Aparentemente, estas eleições estão a decorrer melhor que as últimas, o que é de saudar, mas até agora ainda não decorreram com a normalidade desejável em democracia. As eleições não são apenas o dia das votações, que obviamente é muito importante, pois há um antes, um durante e um depois que aliás se relacionam. O antes, é o processo eleitoral, a liberdade de expressão, associação, informação e comunicação. É o desejável tratamento igualitário das candidaturas, a neutralidade dos meios de comunicação social públicos e dos recursos públicos, o controlo do financiamento das campanhas de acordo com a lei, a composição das mesas de voto, o acompanhamento do processo pela Comissão Nacional Eleitoral. O durante, é a regularidade processual do ato de votar, a tranquilidade e inexistência de incidentes, a liberdade e ausência de coação nos votantes. O depois, é o apuramento dos votos de cada candidatura e a determinação dos mandatos. Do antes sabemos que não foi possível uma missão completa de monitorização da União Europeia (UE) dado as autoridades angolanas não aceitarem parte das condições colocadas pela UE, incluindo o acesso a todas as regiões do país. A UE enviou apenas um numero restrito de peritos. Foram proibidas manifestações, não associadas a partidos políticos, por alegadas razões de segurança de acordo com o Ministro do Interior. Quanto ao dia eleitoral este parece ter sido tranquilo e regular de acordo com as opiniões dos observadores presentes. Falta, para que se complete o processo eleitoral que haja um apuramento de votos e de mandatos e se é certo que compete à CNE fazer esse apuramento, seria importante que esta decidisse por unanimidade (não por maioria) tendo em consideração os argumentos e a evidência empírica apresentada pelos partidos que se apresentaram às eleições. Porém, o caráter muito politizado da própria CNE dificulta que assim seja.

3. Um dos maior desafios que Angola enfrenta nos próximos anos é o da transparência. Desde logo ao nível das estatísticas. Para desenhar políticas públicas de promoção da saúde ou educação é necessário dados que caracterizem a situação do país e acompanhem a sua evolução. Ora nos últimos quarenta anos realizaram-se apenas dois censos da população. O penúltimo, feito ainda pelos portugueses em 1973 de que são conhecidos os dados, e o último, de 2014, publicado em 2015 em que são conhecidos dados sobre a população e sua distribuição pelo território, por idade e por género. Traz alguma informação sobre as carências habitacionais, sobre níveis de instrução, de saúde, composição dos agregados familiares, mas era importante que fosse mais exaustiva. A existência de informação censitária detalhada e fiável é essencial para dar instrumentos ao governo na sua totalidade, e aos ministros sectoriais, para definirem objetivos quantificados de promoção da saúde pública, dos níveis de instrução, das condições adequadas de acesso a água e ao saneamento das águas residuais.

Também ao nível orçamental a questão da transparência é essencial. Existe hoje uma avaliação, reconhecida internacionalmente por organizações, de análise objetiva, pois baseada em indicadores observáveis, do grau de transparência orçamental em cerca de uma centena de países. A posição de Angola neste ranking da transparência orçamental é muito baixa (em 2015 obteve apenas 26 numa escala cujo máximo é 100). A participação do público é baixa, o controle parlamentar fraco e o controle do Tribunal de Contas também. Sobretudo Angola compara muito mal com todos os países da África Austral (atrás de Moçambique, Malawi, Botswana, etc.). A transparência orçamental é condição necessária, mas não suficiente, do escrutínio público e político. É importante que a nova Assembleia Nacional (AN) tenha as competências para a fiscalização do executivo, as exerça e que essa atividade seja pública. Para além de uma desejável transparência da atividade parlamentar, seria importante reforçar as competências da AN. Nas democracias liberais europeias e americanas (do Norte e do Sul), com regimes parlamentares ou presidenciais, as duas maiores funções parlamentares são a legislativa e a de fiscalização do executivo e esta fiscalização faz-se de várias maneiras e em modelos variáveis, mas que incluem geralmente : questões escritas dos deputados dirigidas aos membros do governo, com audições presenciais destes, ou com a aprovação de requerimentos ou de recomendações ao governo (sob a forma de resoluções). Em casos limite a constituição de comissões de inquérito pode ser também uma forma de escrutínio do executivo. O Acórdão do Tribunal Constitucional (319/2013) sugere que à AN não compete fazer nem audições, nem interpelações nem inquéritos. Clarificar o âmbito das competências da AN e reforçar o seu poder fiscalizador parece importante. Note-se que com uma eventual maioria qualificada, que permitiria uma revisão da Constituição, isso não colocaria problemas ao MPLA. É duvidoso que nesta legislatura esse seja o caminho escolhido, dada a natureza fortemente presidencialista da Constituição, mas é uma reforma institucional desejável a prazo. .

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4. A reforma do Estado deveria ser uma prioridade do novo executivo, e as anunciadas intenções por João Lourenço de redução do número de ministérios são positivas, mas não são suficientes. Angola tem uma burocracia excessiva, e pouco qualificada, eficiente e eficaz. Desde logo porque aos ministros sectoriais do executivo (que quase alcançam as três dezenas) há que adicionar todos os governadores provinciais (nomeados pelo presidente), que têm o mesmo estatuto, regime salarial e imunidades que os ministros. Os ministros das finanças, do interior e da justiça e direitos humanos nomeiam “delegados provinciais” após ouvirem os respetivos governadores. As delegacias provinciais são órgãos desconcentrados dos respetivos ministérios e descentralizados dos governos provinciais. Estes delegados estão na dupla dependência do respetivo ministro (orgânico e administrativo) e do governador provincial (funcional). Por seu turno cada “governo” provincial é composto por “diretores provinciais” sectoriais, nomeados após audição dos respetivos ministros e cujo número depende da dimensão da província. Isto significa que, por exemplo, Benguela tem um diretor provincial de educação (que lidera um órgão desconcentrado do governo provincial) e um delegado provincial das finanças (ministério). Para além do excesso de burocracia e de gastos de recursos este modelo torna-se parcialmente ineficaz dadas a inevitabilidade de sobreposição e conflitos de competências em certas áreas.

5. Um outro desafio que se coloca ao desenvolvimento de Angola é o processo de descentralização. Já estava no programa do MPLA nas últimas eleições e continua a estar nestas, avançar para a instituição de autarquias locais legitimadas democraticamente. Note-se que Angola, no contexto dos países de língua portuguesa é dos países menos avançados no contexto da descentralização política democrática. Mesmo no contexto mais restrito dos PALOP, Cabo Verde tem autarquias locais, Moçambique avançou com autarquias num processo progressivo em Maputo e um conjunto adicional de municípios. A criação de autarquias locais, deveria ser progressiva, começando pelos maiores centros urbanos. Esta aproximaria a tomada de decisão das populações, permitiria o confronto político sobre prioridades de desenvolvimento local, enriqueceria o próprio processo democrático pelo alargamento da tomada de decisão democrática. Claro que a descentralização exige a formação de quadros locais, e por isso deve ser gradual, mas a descentralização é ela própria um incentivo a essa formação e envolvimento das comunidades locais no debate sobre o seu futuro coletivo. Esperemos que desta vez esta promessa eleitoral seja cumprida.

6. A reforma da economia no sentido da diversificação produtiva, afastando-a da dependência quase exclusiva do petróleo é hoje consensual para as forças políticas em Angola bem como para os analistas. Na realidade não é só a economia, mas as finanças públicas que estão dependentes do petróleo o que coloca desafios grandes à estabilização e sustentabilidade financeira do país. A descida significativa do preço do petróleo, que se prevê mantenha o seu nível num futuro próximo, sendo negativa no curto prazo, pelo impacto económico e orçamental que tem, pode ser, paradoxalmente, o catalisador da reforma pois torna-a mais urgente. Discute-se a possibilidade de um programa de assistência do FMI e decerto que há defensores e críticos. Esse programa, sendo bem desenhado em diálogo com as autoridades angolanas, teria claras vantagens para o país dado que seria para além de um contributo para a estabilização financeira, também para uma reforma institucional do país e a transparência. O FMI tem aprendido algo com as más experiências do passado, nomeadamente em países em desenvolvimento e não só (como ilustrado pelo recente caso português), e está hoje em melhores condições para exercer uma influência positiva na qualidade da governação.

7. João Lourenço, que tudo indica será o futuro presidente de Angola, ficará decerto na história de Angola, de uma de duas maneiras. Ou como o herdeiro de Eduardo dos Santos que ficou capturado pelas estruturas partidária e administrativa por ele montadas incapaz de reformar as instituições, reduzir a pobreza ou os níveis de corrupção ; ou como o homem que liderou a transição de forma paulatina, mas determinada para uma renovada Angola em que o interesse comum se sobrepõe ao interesse particular numa democracia plural mais consolidada que permite passar da “libertação” ao “desenvolvimento”. Se isto acontecer o MPLA passará a MPDA e será um ator chave no futuro de Angola.