Na semana passada, Portugal experimentou um invulgar e muito saudável sobressalto contra as inacreditáveis declarações autoritárias de Mariana Mortágua contra a liberdade e a propriedade privada — declarações particularmente graves por terem sido proferidas numa iniciativa do Partido Socialista.
Entre os inúmeros excelentes artigos que alertaram para a gravidade dessas declarações, não posso deixar de destacar o da historiadora Fátima Bonifácio neste jornal. A autora certeiramente recordou o ódio contra a liberdade que se encontra na raiz do fanatismo igualitário. E certeiramente apontou a origem moderna desse ódio em Rousseau e, a seguir, nos seus discípulos da ala mais extrema da revolução francesa de 1789.
Mas, ainda esta saudável polémica estava em curso, ocorreu uma outra declaração política da maior gravidade. O Primeiro-Ministro terá definido no Parlamento “uma sociedade decente” da mesma forma que Karl Marx descreveu a sociedade comunista: “é uma sociedade onde cada um contribui para o bem comum de acordo com as suas capacidades, e cada um recebe de acordo com as suas necessidades”. A frase terá sido enfatizada com a expressão “Foi esta sociedade que eu aprendi na minha casa a acreditar”.
É difícil exagerar a gravidade destas declarações. Não quero crer que o Primeiro-Ministro tenha querido dizer o que a frase de Marx realmente quer dizer.
A frase de Karl Marx resume de forma dramática o erro fatal do comunismo e as consequências totalitárias que dele advieram. Mais do que isso: como explicou detalhadamente Karl Popper nos dois volumes de A Sociedade Aberta e os seus Inimigos, de 1945 [Edições 70, 2012], aquela concepção de Marx era de facto herdeira de uma longa tradição anti-ocidental que remonta à oposição do colectivismo autoritário de Esparta contra a liberdade de Atenas, no século V a.C. Como Popper também argumentou, essa mesma concepção colectivista esteve presente no nacional-socialismo e no fascismo do século XX, gémeos inimigos do comunismo soviético.
Observemos a frase de Karl Marx. Se as pessoas devem contribuir de acordo com as suas capacidades e receber de acordo com as suas necessidades, isso implica que alguém terá de deter o poder para determinar as capacidades de cada um e o poder para determinar as necessidades de cada um.
Sabemos qual foi a resposta prática fornecida pelo comunismo e pelo nacional-socialismo a esta questão: esse alguém é o Estado. Mas, este não é sequer o problema mais fundo. Podia, por hipótese, não ser o Estado. Podia ser o “colectivo” — que era em rigor o que Marx tinha em mente naquela frase. E, também em bom rigor, o poder absoluto que o nazismo e o comunismo deram ao Estado foi dado em nome do “colectivo” — a “Nação”, no caso do nazismo, o “proletariado”, no caso do marxismo (o Terceiro Estado, no caso da revolução francesa).
Só que, observou Karl Popper, os colectivos não existem independentemente das pessoas que os compõem. O “colectivo” não sente prazer nem dor, e não tem identidade moral separada das pessoas que o compõem. Também não age nem fala autonomamente das pessoas.
Por esta razão, só há duas maneiras de “ouvir o colectivo”: uma, que praticamos no Ocidente, é deixar as pessoas falarem e prosseguirem os seus próprios propósitos sob regras gerais de boa conduta; a outra, que se pratica nos outros sítios, é pôr alguém a falar em nome do “colectivo”: pode ser o líder, o partido, o ayatollah ou o chefe da tribo. Mas será sempre um poder central ilimitado — que vai dar ordens às pessoas, em nome do “todo”.
Como, ainda por cima, o objectivo do “todo” na frase de Marx é determinar as capacidades e as necessidades de cada um, esse poder central ilimitado não poderá ser regido e limitado por regras gerais de boa conduta — a que, no Ocidente, chamamos leis. Ele vai ter de emitir comandos específicos para determinar os “resultados” que cada um deve obter.
Isto resulta do seguinte facto: a alocação de resultados específicos a cada um (por contraste com uma rede de segurança que impeça apenas alguns resultados abaixo dessa rede) não é compatível com o governo de regras gerais. As regras gerais podem excluir alguns resultados particulares, mas não conseguem predeterminar todos os resultados particulares.
Por esta razão, na ordem política do Estado (por contraste com a ordem civil das associações voluntárias ou empresariais, de onde as pessoas podem entrar ou sair voluntariamente) o “todo” colectivista será necessariamente autoritário, ou mesmo totalitário. Em vez de se submeter a leis gerais, iguais para todos, não retroactivas e independentes de propósitos particulares, o “todo” agirá segundo o capricho da vontade dos líderes, ditando ordens específicas a cada um. Não é por isso compatível com o princípio ocidental da igualdade perante a lei — como muito bem observaram todas as famílias democráticas, incluindo a socialista não comunista.
Acresce que aquele sistema colectivista não pode funcionar duradouramente sem produzir pobreza extrema. Ele rouba às pessoas o seu sentido de responsabilidade pessoal; anula por essa via os incentivos para que as pessoas tentem ir mais longe e tentem explorar o desconhecido. Além disso, nenhuma autoridade central conseguirá processar um volume de informação minimamente comparável ao incalculável volume de informação processado descentralizadamente pelas pessoas, famílias e instituições livres. (Por esta razão ainda, as necessidades das pessoas — por contraste com algumas necessidades básicas — não são susceptíveis de ser conhecidas centralmente à priori).
Eis a razão pela qual o colectivismo conduz inexoravelmente à pobreza e ao poder arbitrário do Estado — em nome do “todo” — sobre as pessoas e à margem das leis. Winston Churchill costumava aliás exprimir este magno problema com o talento comunicador que sempre o distinguiu: “É o Governo que é dono das pessoas, ou são as pessoas que são donas do Governo?”.