Em Novembro de 1793, quando, na Convenção Nacional Francesa, já declarada a abolição da monarquia e proclamada a Primeira República, se iniciou o julgamento do rei Luis XVI, acusado de “conspiração contra a liberdade pública”, o deputado Louis Saint-Just, com apenas 26 anos, proferiu uma frase que ficou para a História: “Não se pode reinar inocentemente.” E de seguida explicou-se: “Todos os reis são rebeldes e usurpadores.” Todos. Portanto, todos merecem a morte, e esta pré-condenação universal dispensaria até as formalidades de um processo judicial. Na Convenção, Saint-Just depressa se destacou pela violência da linguagem, pela sede de vingança e de sangue; de muito sangue. Adorava a guilhotina, erguida na Praça da Revolução, que no auge do Terror exalava um fedor insuportável a sangue humano – de reis, de aristocratas, de burgueses, de pobres e remediados. Como o Terror acaba por devorar os seus próprios filhos, no dia 10 de Julho de 1794 chegou a vez da execução do próprio Saint-Just, numa leva de 22 jacobinos abrilhantada por Maximilien Robespierre, o “Incorruptível”. (No dia 11, mais 106 robespierristas foram guilhotinados.)

A Grande Revolução Francesa de 1789, de cujas aquisições civilizacionais ainda hoje gozamos, fizera-se em nome da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Não está em causa a sinceridade dos que a saudaram e apoiaram – aristocratas, dignitários eclesiásticos e plebeus, o chamado “Terceiro Estado”. Porém, os que nos primeiros anos a dirigiram e se foram guerreando e substituindo uns aos outros no Poder, não eram prioritariamente movidos por esses generosos valores humanistas. Para se compreender a que paroxismos de ignomínia e crueldade puderam chegar, é preciso rebuscar as “profundezas antropológicas” do homem, lá onde se albergam emoções e instintos que escapam a um escrutínio racional, e que constituem, em certas circunstâncias, a mais poderosa motivação das acções humanas. Dessa fonte insondável do nosso ser nasce, entre outros sentimentos, o ódio de classe, um ódio arreigado e sequioso de vingança. Na época contemporânea, digamos que desde meados do século XVIII, quando Rousseau descobriu a incarnação do Mal no “burguês”, o ódio de classe, – o ódio aos ricos e ao “burguês” – constituiu o mais inflamável combustível das revoluções do século XX. E, se não é fácil imaginar concretamente que tipo de convulsões ainda há-de produzir no século XXI, o certo é que, apesar da crescente mobilidade e integração das classes sociais, e apesar da imensa melhoria das condições de vida registada nas sociedades capitalistas ocidentais, o ódio de classe está lá, bem vivo, e nem é certo que tenha abrandado. O caso de Mariana Mortágua não passa da ilustração desta vulgar constante histórica.

O percurso ascendente de Mariana Mortágua na época da “geringonça” foi fulminante. Conhecemo-la na Comissão de Inquérito Parlamentar ao caso BES. Bem preparada, inteligente, serena, firme e discreta, a jovem deputada fizera como deve ser o seu trabalho de casa, e deu nas vistas. Ricardo Salgado felicitou-a diante das câmaras pela sua proficiência. Por falta de tempo, não costumo seguir pela televisão os debates parlamentares, mas constou-me que a promissora Mariana começava a ganhar maior protagonismo no hemiciclo de São Bento, embora de algum modo sempre algo ofuscada pela presidente do Bloco, a grande actriz da política portuguesa que dá pelo nome de Catarina Martins. Digamos que houve entre ambas uma fase de empate, que, como todos os empates, alguma vez ou algum dia têm de ser desempatados.

Essa vez ou esse dia já chegou. Mariana começou a crescer, e, muito humanamente, o crescimento foi-lhe subindo à cabeça. Revelou-se, por fim, uma criatura com as mesmas fraquezas de outra qualquer: queria palco, queria espectáculo com muitos espectadores. Afinal, à sua volta, o bacoquismo nacional, propenso ao deslumbramento, já a promovera a génio nunca visto. Pois era preciso que a vissem, que a vissem bem, que vissem a superioridade com que pisava e ocupava o palco nacional; era preciso que se transformasse “no centro disto tudo” (Público, 21.9), numa verdadeira CDT, sem rivais. Mariana foi mudando, foi crescendo até se agigantar diante dos basbaques socialistas que acorreram a vê-la e a ouvi-la numa rentrée organizada pelo PS no passado Sábado em Coimbra.

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No palco, sentado ao lado dela, um tal João Galamba sorria de orgulho, por vezes literalmente embevecido. Mariana percebeu que era chegada a oportunidade de consolidar a sua ascendência, a sua importância, a sua saliência, e que para isso tinha de chocar, de escandalizar, porque entre nós o choque e o escândalo, mesmo que pelas piores razões, são sempre admirados como grande coragem. Mariana percebeu que tinha de perder a vergonha e dizer o que lhe ia na alma, embora sem confessar o que lhe ia, e vai nas entranhas: um enorme ódio de classe: Vamos a eles ! Vamos aos ricos ! “A primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha de ir buscar dinheiro a quem está a acumular dinheiro.” E a este roubo descarado chamou – “política social” (Público, 21.9). Vamos a isso ! Roubemos todos !

Os “ricos”! Mariana não sabe, não tem mundo para saber o que são e como são os verdadeiros ricos. Mas sabe uma coisa: “Não se pode ser rico inocentemente.” Todos os ricos – todos os ricos mais os que ela, coitada, julga ricos – roubaram, exploraram, espoliaram ou são réus de qualquer crime semelhante. Acabe-se com os ricos – para que se acabe com os pobres! Distribua-se a riqueza dos indivíduos, para melhorar a condição das multidões pobres! Pedir aos trabalhadores que trabalhem mais e melhor? Que ideia tão estúpida! Cita Keynes (de memória), já em 2015: “Não vale a pena as empresas produzirem mais se as pessoas não tiverem dinheiro para comprar a produção.” A invocação do grande economista é de uma extraordinária desonestidade intelectual: Keynes viveu num mundo e pensou para um mundo em que havia fronteiras nacionais, em que vigoravam altas taxas alfandegárias proteccionistas e em que os Estados cunhavam moeda própria à sua vontade. Keynes nasceu em 1883 e morreu em 1946 – muito, muito antes de se iniciar e consolidar o processo de globalização capitalista que define o mundo de hoje. Será plausível, será honesto invocar o seu pensamento de há quase cem anos para caucionar com o seu grande nome uma visão retrógrada e miserabilista de um mundo por ela apregoado como mais próspero e justo? Quem, hoje em dia, a não ser as empresas condenadas a definhar, não produz para exportação?! E quem, senão precisamente os países pequenos, necessita como de pão para a boca dos mercados externos?! A Suécia, a Dinamarca, a Noruega e demais países ricos vivem do mercado interno? Oh, dra. Mariana: mesmo em Portugal, nem toda a gente é imbecil.

Mariana Mortágua, mesmo quando arvora a pose de CDT, ignora a história e não entende o presente: por uma óbvia coincidência, em Portugal há muitos pobres porque há poucos ricos. E onde não há ricos, só há pobres. É só olhar à nossa volta, país a país, e verificar o facto. Vindo ainda a talhe de foice acrescentar que muita da estagnação económica da Europa é apenas o resultado de uma deslocalização das indústrias para longínquas paragens onde, graças à desindustrialização do Ocidente, centenas de milhões de seres humanos saíram da mais extrema miséria – da fome pura e dura. Isso incomoda-nos muito, não é ? Pois, mas é a dra. Mariana que enche a boca com os pobres, com a pobreza, com a justiça social, com a infame desigualdade das nossas sociedades ocidentais. Mas nestas, que importa que haja mais milionários se os pobres se tornarem, como tornam, menos pobres?

Bem sei: os milionários são demasiado “ricos”, e como todos os ricos, grandes ou pequenos, devem ser exterminados. Ódio de classe. Pois bem, pago na mesma moeda: nasci numa família rica graças à indústria de meu Pai, em que desde muito pequena aprendi o valor supremo do trabalho e da honestidade: aprendi a ser uma pessoa de bem. Também aprendi a “acumular dinheiro”!!! Quer dizer, a poupar o necessário para evitar depender de terceiros. Aprendi o valor da independência, condição da liberdade, o meu valor supremo. Aprendi o valor de viver numa sociedade decente, em que a pobreza não seja miséria, em que a igualdade de oportunidades seja garantida e em que o mérito seja premiado. Pago os meus impostos todos, todos e mais alguns, mas não aceito o confisco que a dra. Mariana, por puro ódio de classe e correlativo espírito de vingança, quer impor a quem trabalha, ganha e poupa, ou a quem herda o que os pais ganharam e pouparam. Não quero que o Estado me seja imposto como sócio num negócio privado de família.

Tenho orgulho de classe. Porquê? Porque a civilização burguesa, a que pertenço, foi a primeira civilização na História a dignificar o esforço e o trabalho.