23 de Junho de 2016. 29 de Março de 2017. Algures em 2019. É o caminho cronológico da primeira redução de número de Estados-membros da União desde o seu nascimento a 1 de Janeiro de 1958. Ironicamente, acontece quatro dias depois da assinatura do Tratado de Roma que selou CEE a 25 de Março de 1957. Dos Seis aos 28 e agora a caminho dos 27.

Seja qual for o resultado desta saída do Reino Unido, que se iniciou com a carta de Theresa May ao presidente do Conselho Europeu Donald Tusk nesta quarta-feira 29 de Março, nada será como dantes. Porque o mundo já não é o que era no pós II Guerra Mundial, porque a União Europeia (ainda) não conseguiu encontrar uma outra razão para a sua existência. Porque o que hoje parece dividi-la é mais do que aquilo que a parece unir.

O “sim” dos britânicos à saída da UE não pode ser visto como um caso isolado. É um caso extremo, mas integra uma tendência geral de opinião dos povos que integram a União. Veja-se a França onde Marine Le Pen chega ao ponto de defender o regresso de uma moeda nacional prometendo que fará um referendo sobre o assunto ou que a sua prioridade como presidente será o regresso ao controlo de fronteiras. E se quanto ao euro não tem o apoio da maioria dos franceses – que querem a moeda única – o mesmo não se pode dizer quanto às fronteiras.

Em Portugal as vozes contra a União Europeia foram sempre limitadas e nunca tiveram muitos simpatizantes. O PCP opôs-se à entrada do país na CEE em 1986, o Bloco de Esquerda foi sempre muito critico e o CDS/PP foi intercalando tempos de critica à Europa com tempos em que pouco dizia sobre o assunto. Mas não era um tema que mobilizasse eleitores – hoje também não parece ser – e menos ainda economistas ou líderes de opinião. João Ferreira do Amaral foi durante anos a única voz verdadeiramente critica da participação de Portugal na União Económica e Monetária e os reparos ao funcionamento das instituições europeias eram bastante limitados.

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Hoje, mesmo em Portugal, um país que ainda se pode considerar como pertencendo ao grupo dos euro-entusiastas, como se vê no Eurobarómetro, as críticas são bastante mais audíveis, quer as que vêm dos mesmos quadrantes políticos – o PCP e o Bloco –, como as que se começam a estrear entre economistas, gestores e líderes de opinião. É aliás entre as lideranças que os reparos ao funcionamento da União Europeia começam agora a ser mais significativos.

No universo da banca portuguesa, por exemplo, é hoje comum criticar o funcionamento da União Bancária, o que é inédito na história da participação de Portugal na UE. O peso em custos das burocracias que são exigidas pelo Mecanismo Único de Supervisão, as restrições que foram impostas à capitalização da CGD com uma emissão de obrigações que vai pagar um juro de 10,75%, a actuação da Direcção-Geral europeia para a Concorrência não só na CGD mas também no caso Banif, vendido à força ao Santander, ou ainda o tempo que Frankfurt leva a dar a sua bênção a quem vai para a administração dos bancos são apenas alguns exemplos que têm irritado o sector financeiro.

A opinião pública em geral, a acreditar no Eurobarómetro, continua empenhada na União Europeia – o apoio baixou marginalmente na última década e meia. Mas as elites portuguesas parecem estar cada vez mais incomodadas com as regras europeias. Tal seria um bom sinal – se considerarmos que durante a última década e meia o país viveu de rentistas, como vemos pela “Operação Marquês” e os casos BES e PT, para só citar os que implodiram. Ou seja, as elites que viveram de rendas, e que são basicamente as mesmas, estão incomodadas porque agora é mais difícil continuarem a extrair valor do que é criado pelos outros, em vez de o criarem. Seria um bom sinal se a Europa estivesse a funcionar bem.

Contrariamente ao que por vezes é afirmado, não é o liberalismo que está a matar a construção europeia, é antes um intervencionismo irracional que balança entre a pura tecnocracia e a gestão política.

O caso da defesa da concorrência é o mais irracional. Poder absoluto da Comissão, as decisões da Concorrência impedem fusões e ditam o colapso de instituições financeiras, num espaço em que qualquer país pode usar como arma os impostos ou a legislação laboral para ganhar competitividade. O que prejudica mais a concorrência? O Estado português aumentar o capital da CGD ou a Irlanda praticar impostos mais baixos no sector financeiro?

É o intervencionismo incoerente numa construção europeia que deu prioridade à integração monetária e financeira que está a minar o projecto europeu, fragilizado pela insegurança das migrações e pelas diferenças entre as hierarquias de valores dos diversos Estados-nação. Vemos o Sul e o Norte da Europa em oposição por causa dos problemas financeiros, vemos o Leste o Oeste desavindos por via das migrações.

A recente revolta a que se assistiu em Portugal e em Espanha sobre as declarações do presidente do Eurogrupo Jeroen Dijsselbloem são o reflexo dessa profunda divisão entre o Norte e o Sul. Claro que é, no mínimo, de mau gosto, dizer que ninguém pode ser solidário com quem “gasta o dinheiro em copos e mulheres” para afirmar o valor de que toda a solidariedade deve ser recíproca (atenção que o ministro holandês das Finanças nunca se referiu aos países do Sul nessa sua frase). Mas o que o que disse revela uma profunda diferença naquilo que os povos do Norte e do Sul consideram ser a “solidariedade”. Num artigo publicado no “Evonomics”, o antropólogo norte-americano de origem russa Peter Turchin defende um outro modelo de construção europeia e cita o ministro das Finanças da Baviera Markus Söder a dizer basicamente o mesmo que Dijsselbloem mas de forma muitíssimo mais correcta: “No Sul da Europa a noção de solidariedade é diferente da nossa”.

A saída do Reino Unido da União Europeia vai reforçar o peso do Sul (se incluirmos nesse grupo a França) nas decisões europeias o que, em si, é propiciador de tensões ainda mais perigosas para a manutenção do projecto europeu.

Se o Reino Unido sair da União, e conseguir um tempo de prosperidade, outros tentarão seguir-lhe as pisadas. Caso os primeiros tempos fora da União sejam de crise económica, a própria Europa será inevitavelmente contagiada e não aguentará uma nova crise. Todos os outros cenários intermédios ditam um futuro para a Europa que será muito diferente do passado.

Há razões, desta vez, para recear que não vai ser possível dar passos em frente para resolver os problemas internos – uma receita que a União usou com frequência. Tal como a tecnocracia, em que se transformou a União, somada à sua diversidade impedem que se consiga mudar a Europa por dentro.