Cameron e Renzi andaram a brincar aos referendos em busca de simpatias políticas. Foi tudo uma questão de táctica eleitoral. E o resultado foi um desastre. Para eles, para a estabilidade política dos seus países (agora divididos) e para a viabilidade do projecto europeu. É que não lhes bastou o mau uso dos referendos como forma de destruir a sua carreira. O dano colateral foi a abertura da porta à legitimação dos populismos anti-sistémicos. Sim, os referendos são geralmente entendidos como instrumentos democráticos por excelência, ao atribuírem ao povo uma decisão soberana acerca da condução da sua vida colectiva. Renzi até chamou ao referendo italiano “uma grande festa da democracia”. Mas essa visão simplista esconde o lado negro dos referendos de 2016, convocados a despropósito e unicamente em nome da táctica política. E com consequências graves: a substituição do institucionalismo republicano (de representação política, de freios e contrapesos) pelos mecanismos de democracia directa (onde a maioria esmaga a minoria e onde os populismos florescem). Isso foi notório em três aspectos.
Primeiro: as questões de elevada complexidade desvirtuaram o recurso aos referendos. Porquê? Porque se tornou evidente que os cidadãos (britânicos e italianos) não entenderam inteiramente o que estavam a decidir nem as respectivas consequências da sua decisão. O ponto não é, claro, distinguir entre votos “bons” e votos “maus” – seria absurdo e anti-democrático. O ponto é que se se juntarem dez pessoas que votaram no mesmo sentido, teremos dez versões do significado desse voto para a questão referendada – e, muitas vezes, essas versões serão contraditórias entre si. Todos nos lembramos da lastimável campanha do Brexit – e da incredulidade que se lhe seguiu. E, quanto a ontem, o facto é que, como assinalou Vital Moreira, 9 em cada 10 italianos não sabiam exactamente o que estava em causa no referendo. Ora, quando a pergunta não é entendida, levar a sério a resposta não tem qualquer sentido. Como tal, o referendo italiano pode até estar formalmente envolto em legitimidade democrática, mas não tem significado para a questão referendada.
Segundo: em momentos de elevada instabilidade política, como aqueles que vivemos, os referendos facilmente se converteram num voto de confiança aos governos. E mais imediato isso foi quando Cameron e Renzi centraram o debate neles próprios, estabelecendo directamente a relação entre o resultado pretendido e a sua posição de primeiro-ministro. Conclusão: foram os próprios políticos que convocaram os referendos a destruir a sua validade, diminuindo a fiabilidade da consulta popular quanto à questão em discussão. Era só táctica, certo? Só que apostar na sorte é arriscar ter azar. Aconteceu com Cameron. E, ontem, com Renzi, agora demissionário, pois foram muitos os que votaram só para rejeitar o seu governo, alheios à questão que estava a ser referendada.
Terceiro: a imprudência de Renzi e Cameron, que por interesse próprio convocaram referendos sobre matérias complexas (ponto 1) e associaram o seu resultado à legitimidade política do seu mandato (ponto 2), criou uma tempestade perfeita para a afirmação de populismos inimigos da liberdade que, de repente, encontraram nos referendos um palco de vitórias que nunca de outro modo alcançariam. A esses bastou-lhes fazer o que fazem melhor: expor o oportunismo dos partidos do “establishment”, promover a confusão entre informação e conspiração, abusar da demagogia e reduzir o mundo ao maniqueísmo dos 140 caracteres do Twitter. Legitimados pelo Brexit e por um potencial Italexit, os portões europeus ficaram ainda mais escancarados à mercê da próxima vaga populista.
Quando, um dia, se escrever a História desta decadência europeia, haverá certamente um capítulo dedicado a Cameron e Renzi. Isto é, ao suicídio político desta Europa cujos líderes, adiando a discussão dos problemas reais e recorrendo aos instrumentos democráticos à medida das suas tácticas eleitorais, entregaram os regimes republicanos e liberais aos populismos anti-sistémicos e inimigos da liberdade. Sim, devemos recear o alastrar dos populismos e apontar-lhes o dedo sempre que seja necessário desmascará-los. Mas, já agora, não esqueçamos pela mão de quem eles chegaram à nossa porta.