1. Longe de mim achar que o povo anda cabisbaixo, como a feira do Alexandre O’Neill. Está distraído, o que é natural, o circo tem excelentes “meneurs” e é farto em números. Há ficções (crescimento à base de consumo, levantar a voz em Bruxelas); há redações (o fim da austeridade); há contradições (em Belém as Finanças estão, quem diria, “controladas”, mas Centeno, que não nasceu para a política, “luta”, pareceu-me até que diariamente, para “evitar um segundo resgaste”); há constatações da má navegação (aumento de despesa, da dívida e consequente subida de impostos, uns atabalhoadamente explicados, outros negados e logo ressuscitados, outros disfarçados); há desorientações na equipa governamental a propósito de alguns ministros e divisões no PS por causa das políticas impingidas pelos radicais. Tem havido espectáculo e sempre variado mas agora passou a haver assaltos organizados. Assassinos, uns, como o que ocorre com o imobiliário, talvez o único sector que não estava ligado à máquina. Indecentes, outros, como o disparado contra o dinheiro alheio. Revolucionariamente “acha-se” que ter dinheiro é fatal injustiça merecedora de sanção pesada: há que ir-se-lhes ao bolso.
Ou seja, está um curso uma escalada perigosa, num país mal entregue.
O ar do tempo já em nada se compara com as pequenas mentirinhas, as manhas, os volte face, as gafes a que estávamos habituados. A coisa virou: o relógio português andou décadas para trás e os leninistas voltaram a entrar aparatosamente em cena, legitimados pelo líder do partido socialista e chefe do governo. Uma estreia absoluta.
2. E por sobre tudo isto há esta coisa absolutamente espantosa que é a quase geral e condescendente naturalidade com que “tudo” é apresentado ou comentado pelo palco e digerido e aceite pela plateia. Quando eu me lembro de um governante de “direita” que, sob o clamor ululante das oposições, foi expulso de um Executivo por ter contado uma anedota desajeitada e vejo agora um ramo de secretários de Estado de “esquerda” a ir à bola à conta de empresas com quem o Governo mantém tratos negociais, e nada se passa no poder… Nada de substancial na indignação, nada de pesado nas consequências. Nada enfim, que traduza o reconhecimento do pecado. Houve uns disfarces, mas passou, já lá vai.
(Para não falar, por exemplo, nos exaustivos “pedidos de demissão” que ao longo de anos pontuaram cada um dos governos à direita do PS ou o rosário de prontas “indignações” e incessantes “reclamações” disto e daquilo. De tudo, melhor dizendo, lembram-se?)
Que vida tão esquisita, que fluidez no dito por não dito, que leveza no condenar ontem exaltadamente uma situação por vezes anódina, e hoje, com pressa e despudor, disfarçar, negar ou mesmo abençoar ocorrências de mau comportamento éticos ou maus hábitos democráticos. Que vergonha no uso destes pesos e destas medidas… Oportuna vergonha, em todo o caso, ninguém se importa com ela mas que confiança pode distribuir pelos portugueses quem age politicamente com esta cartografia de procedimentos? Que crédito merece quem embala o país em ficções, quem ilude sobre as contas, quem finge destinos felizes, quem distribui alegremente o que dinheiro que não há? E quem é capaz de aplaudir com ambas as mãos -partilhando o aplauso de disposições revolucionárias que prometem passar a leis e a regras?
3. A grande Catarina, está magnânima e cordatamente disponível para o que for preciso, porque – voilá – o poder legitima, segura e autoriza a sua geringonça privativa. Como nunca ninguém ali (na geringonça do BE) alguma vez ousou sequer sonhar.
O Bloco tem hoje o invejável estatuto de “parceiro”, negoceia directamente com o Governo, decide, escolhe, impõe. Tem poder e usa-o com vantagem.
Uma mina de oiro este inesperado ex-líbris de “legitimidade”.
Mas desenganem-se os que acham que o Governo pode quebrar por ali. Pura miragem. O Bloco nunca quebrará. Mas não se enganem sobre o essencial e por isso volto a este ponto, o único que interessa: o que pode quebrar (irreversivelmente?) é o PS tal como sempre o conhecemos e o país dele necessita. O PS que formatou o regime, com a sua natureza especifica e o seu espaço próprio no mapa partidário e na vida politica nacional. O PS e os valores que lhe conhecemos, as suas coordenadas, as escolhas e as prioridades que fizeram dele um dos pilares onde assenta o edifício político e a organização social e económica onde vivemos há quarenta anos.
Recuso-me a acreditar que a condescendência vigente, a geral indiferença, a distração provocada pela vida circense de algumas instituições, iluda a gravidade da ameaça que paira sobre a família socialista. Vote-se ou não nela, para o caso isso não tem a menor importância.
4. Assim estamos. Mas estamos onde? Com que projecto, com que desígnio, com que vontade? Ou se quiserem, mais modestamente: com que propósito? Não se descortina para onde se vai com este estado de coisas. Tenho dificuldade em identificar que gesto, ideia, medida, teve António Costa que beneficiasse de facto o país e não os interesses e a manutenção da sua ambição política pessoal. Talvez seja tempo, de uma vez por todas, de parar de gabar as suas qualidades de “grande negociador “ e de lhe perguntar para onde nos leva, responsabilizando-o pelos resultados.
Nada disto enfim se recomenda mesmo que não se veja ninguém particularmente incomodado com esta vida. Enquanto a conta não chega, ilusionam-se almas e gentes com falsas benesses e as sessões contínuas do espectáculo fazem o resto. Deve ser isso.
Mas que espanta ver país tão parado, conformado e alheado, espanta, sim.