1. Não me foi indiferente a postura de Miguel Macedo. Sou sensível a portes dignos de quem não desabafa na praça pública, não se confessa na media, não faz de cada jornalista um cúmplice, não explica demais; e é capaz de expor uma decisão difícil numa sóbria e seca intervenção de três minutos televisionados. Isto dito, a louvação que lhe fazem é suspeita até ao infinito. Os bondosos votos de congratulação do bondoso PS não podem ser pior sinal: a surpresa foi boa de mais, toca de pedir mais cabeças. A media louvou-o porque ele não é Crato nem Paula. Como se fosse parecido, como se as comparações fossem politicamente sérias e não em si mesmas, descabidas. Como se uma equipa governativa fosse uma equipa de futebol.
O que se sabe é que enquanto Macedo governou (e fê-lo bem), nem um som e ainda menos o reconhecimento de uma competente actuação governativa. Só se pode olhar para este governo se for para lhe dar pancada. Agora que se despediu, é um herói – mas só porque se despediu. O novo herói.
Nada disto teria aliás grande importância, pois o ar do tempo por definição esvai-se e vem outro. O que é preocupante – e não será pouco – é que a casa da qual Miguel Macedo era o guardião é importante demais, pela sua natureza, pela sua (imensa) delicadeza, pela especificidade das suas relações com o exterior, pela segurança do Estado português, pelos nossos parceiros europeus. As nossas fronteiras são as da União Europeia. Sobram por isso algumas dúvidas e espero ardentemente que só sobrem aqui e não lá fora, por essa Europa dentro: há quanto tempo é que “isto” durava? Que estragos deixou ou vai deixar? Haverá mais casos para além dos Vistos Gold? Quem sabe o quê? A que nível de contaminação chegaram as coisas? Quem vier, que fará neste terreno minado? E, last but not least, como foi possível?
2. Ainda a noite não caíra no domingo e logo se partiu numa azáfama para a certeza de uma remodelação, talvez mesmo “iminente”. Mas bastava fazer contas de cabeça: se o primeiro-ministro tentara segurar Macedo – pelo menos até ao fim de semana –, certamente não se entretivera entretanto a remodelar o seu Executivo. E, de ontem para hoje, ainda menos. Passos não faz nada a correr, é racional a pensar, frio a actuar, tem o critério ponderado. Além disso deve haver poucos políticos tão habituados a “maus bocados”. Desde Junho de 2011 não tem havido outra coisa, este é mais um: pesado, claro. Macedo e ele são amigos antigos, há boas cumplicidades entre ambos e sabe-se como um caminho comum e partilhado, pode contar em política.
(E ou muito me engano ou esta história deixará marcas entre ambos. Outra “maçada” que nenhum deles quereria mas as coisas são o que são.)
O que nunca percebi foi esta espécie de voraz apetite que se apossa de aprendizes de políticos sobre a instantânea (como o pudim) bondade da remodelação. E remodelar quem? Todos? Alguns? Metade? E por que haveria de coincidir a opinião da rua, da media, da opinião publicada com o entendimento do chefe da orquestra? E porque hão de os que entram ser sempre “melhores” do que os que saem?
Misteriosamente uma remodelação é brandida como panaceia última, factor de redenção de um Executivo, medida salvífica, medicina milagrosa, varinha mágica. Não percebo porque há-de ser assim, se a natureza humana é feita de gente normal e não de génios. E ainda se uma pessoa normal, sem particular vocação de servidor público, dificilmente considerará atractivo ganhar pouco, trabalhar sem horas, ser ridicularizado (na melhor das hipóteses) e humilhado na media, apupado na rua, e por fim acusado de ladrão se “se” descobrir que o novo “governante” se esqueceu um dia de pagar uma bilha de gás ou se aceitou uma garrafa de vinho de um amigo. Ou seja, é-se automaticamente aspirado – ou melhor, capturado – pelo mundo da mais gritante irracionalidade.
E depois, passados estes cabos – se alguém quiser passá-los, é claro – é preciso tempo: ninguém entra de supetão num governo, bom ou mau. E ninguém se achará em condições de agir ou intervir se não tiver chão debaixo dos pés. O que significa formar uma equipa, conhecer a casa, perceber os dossiers, fazer contas, ter autoridade. Significa tempo, repito. E tempo é justamente o que, neste caso concreto, há pouco. Daqui a nada vem o ano novo, e logo a seguir a primavera, e logo a seguir as campanhas eleitorais, e logo a seguir as eleições. Quase um estalido de tão rápido. (Como um daqueles estalidos que usa António Costa para dizer nas televisões que “não se acaba de um dia para o outro com a austeridade.”)
Passos Coelho – diz quem sabe – ouve muito e fala pouco. Decide sozinho, não gosta de ser pressionado e não costuma comover-se com o ar do tempo.
3. Por falar em António Costa: a prazo, a narrativa actual do PS – sobre dívida, rigor orçamental, crescimento, investimento público – é um perigo: induz o erro e tem falhado em toda a parte.
Continuam, no Rato, a olhar para o passado, ficcionando-o; às segundas, quartas e sextas ressuscitam o PEC IV; às terças e quintas esquecem-se de si mesmos – do que fizeram, disseram e decidiram – na primavera de 2011. É ainda mais inacreditável que desresponsabilizante que se tenham “oficializado” estas duas ou três falsidades: o Memorando não foi negociado pelo Governo Sócrates; não houve uma sequência de anos de défice externo, excesso de procura, excesso de endividamento que coincidiram com um dos mais baixos crescimentos da área do euro; nada disso foi feito em nome de um Estado assumido como agente impulsionador (que não impulsionou coisíssima nenhuma: quantas vezes já escrevi isto?)
4. Há gente que morre na praia. Nadou contra ventos e marés, não foi ao fundo, não se atemorizou, não fugiu do mar em fúria nem se deixou tentar por rota mais amena. Nenhum gigante Adamastor a fez retroceder, nunca desistiu da navegação. E depois morre na praia.
Olhando politicamente para o governo, por vezes penso o mesmo: irão morrer assim?
Ocorreu-me isto por me surgir como evidente desde o início desta governação que Passos tinha estofo para “aguentar.” (Há dias um político insuspeitíssimo da menor simpatia pela personagem dizia-me que “o primeiro ministro era excelente na adversidade”.) Se o tempo foi passando, a adversidade não. Nunca baixou a guarda: dos duríssimos anos da troika à crise aberta pela demissão de Portas, dos diversos casos de corrupção ao caso BES, passando por uma Europa que não cresce economicamente, pelo comportamento inclassificável de alguns altos funcionários da administração publica, e até pela Legionella, para só citar estes exemplos, foi uma sucessão de voltas e reviravoltas, como se a viagem governativa fosse de carrossel.
Sucede que sendo óptimo “ser bom na adversidade”, não chega. E a partir de certo momento, nem interessa. Há que virar uma página e começar outro capitulo: independentemente das condições do país ainda afligirem o Governo; independentemente de ser preciso ter cuidado com as contas e com o resto; independentemente dos amanhãs que teimam em não se anunciar radiosos; independentemente de tudo, é preciso articular as exigências orçamentais ditadas pela nossa modesta realidade, com outra coisa. Outro discurso, uma história diferente, algum futuro. Uma espécie de outro lado. Tivemos a cara, falta a coroa.
Outro lado? Sim. Outro lado é – por exemplo – sabermos como prosperar, com justiça, como sociedade democrática, aberta e concorrencial , num mundo globalizado. Parece pomposo e grave, não é. No fundo é simplesmente responder aquela pergunta (em versão apesar de tudo um pouco mais actualizada…) que Oliveira Martins fazia, nos idos de 1892: “Parece -me chegado o momento em que no decurso de dois séculos e meio a nação portuguesa se encontra perante uma interrogação vital. Há ou não há recursos bastantes, intelectuais, morais, sobretudo económicos, para subsistir como povo autónomo dentro das fronteiras portuguesas?”
Se o actual Governo disser o que se propõe fazer para que colectivamente possamos responder a esta essencial questão, está encontrado “o” outro discurso. E de caminho, a política.