Como em quase tudo na vida, não muda quem não quer. Não quer a classe política da esquerda à direita. Não querem os académicos e os intelectuais. Não quer a comunicação social. Não querem os sindicatos. Não querem os alunos. Não querem as famílias.
A indisciplina nas escolas constitui o inconfessado orgulho de uma sociedade que gosta de crianças e jovens dinâmicos, ativos, engraçados, inconformados, indignados, reivindicativos. Relacionamo-nos com o fenómeno como, in illo tempore, o homem poderoso ralhava mas desculpava o filho varão que se entretinha a violar meninas, filhas de pobres das redondezas, enquanto não assumia as responsabilidades da idade adulta. “Coitada da moça… Arranja-se um casamento e dá-se qualquer coisa, a ver se a família não incomoda… Ele não pode ouvir, mas – ah!… – o meu rapaz é macho! É valente!”.
Imagem abusiva. Concedo. Afinal de contas não existem “moças” violadas a cada esquina, mesmo tratando-se de filhas de gente que semeia rebentos sem ter como lhes garantir ricas condições de existência.
Concedo até ser inadmissível raciocinar nestes termos. Mas admito-o apenas quando a consciência coloca a moral ou a ética no âmago do que nos move. A ser este o caso, a condição social dos envolvidos ou a representatividade estatística das ocorrências não são atributos relevantes. Passa apenas a contar o ato em si. Mesmo que seja um único caso. E seguramente que não é esse o retrato da indisciplina nas salas de aula. Os atos conhecidos há muito chegam e sobram para espoletar indignação cívica. No entanto, ela nunca acontece. Se acontece é fingida, sem consequências. Nada de substantivo muda.
Gente comum ou douta, gente crente ou outra tanta com responsabilidades cívicas e políticas, em conjunto ou segmentada, nunca se manifestou sensível para associar, de modo convincente, a dimensão moral, ética, humana ou civilizacional aos olhares sobre a indisciplina nas salas de aula. Reagimos como se as suas recorrentes manifestações não implicassem consequências em seres humanos como nós e na própria ideia de sociedade em que ambicionamos viver, fundada na escolarização universal dos seus membros.
Virámos zombies morais quando confrontados com atitudes e comportamentos nas salas de aula.
Imaginemo-nos por momentos assassinos sem perda de lucidez. Apesar de agressores, esperaríamos que questões morais e éticas fossem obrigatoriamente convocadas para legitimar o direito dos outros de se protegerem dos nossos atos. Mas não menos contaríamos com o respeito pela nossa condição humana em nome dessa moral e dessa ética. Elas chegar-nos-iam, inevitavelmente, por via de “qualquer coisa” pragmática, cuja consequência fosse efetivamente dissuasora. Para nós, assassinos arrependidos ou não, e para outros que ousarem o ato. Teríamos a nossa penalização, castigo ou punição. Nada mais justo.
“Qualquer coisa” é que torna a moral e a ética efetivamente em moral e em ética. Elas jamais regulariam a vida coletiva se se limitassem a abstrações, intenções, ideias, sermões. E não existem fórmulas alternativas de as sociedades travarem o crescimento de fenómenos que ameacem a sua viabilidade ou a qualidade das suas instituições.
A indisciplina nas salas de aula, por seu lado, vai existindo num universo paralelo, o do sermão bem-intencionado, mas sem consequências práticas. E nada mudará enquanto não a considerarmos parte do universo regulado, no seu âmago, por referentes morais, éticos, civilizacionais, intrinsecamente dependentes das nossas conceções da condição humana.
Para percebermos o que está em causa admitamos a probabilidade de as mulheres se contarem entre os alvos preferenciais da indisciplina. De forma manifesta ou latente, física ou psicológica. Mais não seja porque o corpo docente é dominantemente feminino.
Assim sendo, as nossas sociedades não se podem orgulhar de as mulheres terem conquistado espaços, estatutos e profissões de prestígio e de dignidade tradicionalmente masculinos; nem da sensibilidade social crescente ao combate à violência contra as mulheres – quando, ao mesmo tempo, fazemos vista grossa ao modo como a dignidade pessoal, profissional e social dessas mesmas mulheres é maltratada nas salas de aula.
Aí, (quase) todos os dias irrompem manifestações de vingança do inconsciente coletivo masculino contra a perda, para o sexo oposto, de lugares e estatutos de poder e prestígio nas sociedades contemporâneas. Essa herança civilizacional primária é a principal fonte que alimenta a indisciplina nas salas de aula, tal como a conhecemos hoje. Nesta perspetiva, a indisciplina nas escolas e a violência de género são uma e mesma coisa. A diferença reside apenas no que separa a semente do fruto.
Numa sociedade matura, civilizada, esse inconsciente masculino (que acaba por condicionar o feminino) deveria ser domesticado sem falinhas mansas desde as mais tenras idades e onde quer que se manifeste. Caso contrário, continuará a acontecer por gerações o que bem conhecemos. Não basta, pois, exibir-se uma tão ingénua quanto estúpida indignação quando se olha para as estatísticas da violência doméstica ou para o número de mulheres todos os anos assassinadas.
As sociedades europeias, pautadas por progressos notáveis em diversos domínios, no caso da indisciplina em sala de aula ergueram biombos para persistirem em fuga do que sobra de mais selvagem em si mesmas. Além dos legisladores, pedagogos, psicólogos, sociólogos e o mais conferiram um pretenso rosto «científico» ao que, na substância, tem invariavelmente resultado na desculpabilização das nossas mais grosseiras perversões. Mas debaixo do sol não há nada novo. A violência descobre sempre alvos que as sociedades deixam vulneráveis.
Tais especialistas representam o homem poderoso que dá cobertura ao filho varão-aluno que viola as moças-professoras, embora não se esqueçam de lhes dar «qualquer coisa» para não «incomodarem». As universidades, por vergonha, deveriam fechar para pensar no que andam a fazer há décadas em matéria de indisciplina nas salas de aula.
Mais. As relações estabelecidas numa sala de aula ocorrem num espaço de intimidade entre docente e alunos. Se assim não for, também não funcionam. O poder do género nesse espaço de intimidade institucional é, no essencial, equivalente ao poder do género na intimidade familiar.
Antecipando as nossas sociedades que a condição feminina, pelas mais variadas razões (biológicas, históricas, sociais, culturais, económicas), tende a guardar para si as vitimizações de que foi alvo e que a moral pública passou a considerar intoleráveis, transitámos para um estádio civilizacional em que, em matéria de violência, o coletivo tem o direito de quebrar o interdito do respeito pela intimidade da vida familiar (espero que não se vá além disso…) para resgatar a dignidade, a tranquilidade, o equilíbrio existencial das vítimas. Sejam mulheres, crianças, idosos, homens.
Torna-se absurdo que essa mesma sociedade proceda de modo inverso quando as mulheres, na condição de professoras, têm de gerir salas de aula onde é muitíssimo mais provável a ocorrência de situações de intimidação e de violência. Verbal, física, psicológica, grosseira, sofisticada, suave mas persistente ao longo de uma vida.
Por mil e uma artimanhas, fazemos com que as mulheres, na condição de professoras, se sintam sempre culpadas pelos abusos ao nível de atitudes e comportamentos que se manifestam nas salas de aula. A esquizofrenia coletiva obriga-me a escrever o óbvio: as professoras são vítimas. Tanto quanto os alunos pelos quais são responsáveis.
Para percebermos a realidade insana em que insistimos viver, basta aplicar a lógica imposta ao ensino à relação das mulheres com certos maridos ou companheiros. Voltaríamos a achar imensa piada e a ensinar nas escolas a versão original do “Sebastião come tudo sem colher…”.
Se os papéis de mães e professoras não se confundem, nunca deixa de estar presente a condição de mulher. Nunca deixa de contar o sentido maternal. E não importa a expressão concreta como se manifestam no dia a dia das escolas.
Deveria ser tida por criminosa a burocracia imposta ao ensino para regular atitudes e comportamentos na intimidade da sala de aula, para mais alinhada com crenças herdadas. Em conluio, tudo fazem para perpetuar o mal, isto é, para conservá-lo no íntimo das mulheres-professoras. Há sempre uma porção de dignidade que todos nós temos de engolir. Mas andamos a exigir-lhes que engulam um copo que transborda todos os dias.
Na nossa ordem moral, para as professoras sobram os restos das guloseimas com que, no ensino, as sociedades empanturram crianças e adolescentes. Dá a ideia que as professoras valem como “coisas” situadas a meio caminho entre o objeto, o animal e a pessoa.
Somos abjetos, broncos, boçais, selvagens, criminosos, imundos. Esta epidemia tem de ser travada. Em nome de uma ideia de civilização.