Se alguém precisasse de medir a degradação da vida pública e das instituições em Portugal, ter-lhe-ia bastado considerar os comentários à prisão do ex-presidente do BES, Ricardo Salgado. Salgado foi detido como suspeito de crimes de burla, abuso de confiança e branqueamento de capitais. Mas o que estimulou a veia opinativa da nação não foi o facto de Salgado ter sido preso, mas o facto de ter sido preso agora – e só agora. Aparentemente, o que o país gostaria era que Salgado tivesse sido preso no auge do seu poder, quando dirigia o “banco do regime” e almoçava com José Sócrates. Então – e só então — é que a justiça teria justificado a nossa admiração.

Isto justifica talvez duas observações. A primeira é que a justiça portuguesa, como já sabíamos, não nos merece confiança; a segunda, talvez mais inquietante, é que ainda não foi desta que demonstrámos merecer outra justiça.

Em relação à primeira observação, é verdade que a recorrente sintonia entre diligências judiciárias e conjunturas políticas justifica todas as dúvidas. A vida pública portuguesa está minada de “casos” que, arrastados ao longo de anos, emergem e submergem como se os procedimentos forenses fossem determinados pelas disputas políticas. O resultado disso tem sido o descrédito de qualquer processo envolvendo “figuras públicas”, ao ponto de que mal alguém cai nas mãos da justiça, por mais suspeito ou criticado que tenha sido antes, eis o país a dar-lhe o primeiro benefício da dúvida (Porquê agora? Porquê só ele? E os outros?) ou até sinais de simpatia (Coitado…). Dá ideia de que a melhor maneira de passar, já não digo por inocente, mas por digno de estima ou de lástima, é ser arguido, acusado ou condenado. O nosso sistema judicial, nestes chamados “casos mediáticos”, só parece capaz de produzir “vítimas”. É por isso que o “dono-disto-tudo” ainda pode bem transformar-se na “vítima-disto-tudo”.

A segunda observação é esta: ao contrário do que parecem pressupor aqueles que teriam adorado ver Salgado preso no tempo em que era “poderoso”, a justiça não é uma questão de pirraça ou de punição social, mas de provas e de procedimentos legais. Não estamos em 1975, quando os banqueiros iam para a prisão apenas por serem banqueiros. Salgado não pode ser preso só porque um dia mandou no país em parceria público-privada com José Sócrates. Isso é uma questão política. Salgado deve ser preso, como qualquer cidadão, na medida em que o sistema judicial tiver, contra ele, indícios e provas de crimes e de irregularidades. De facto, o que esta história sugere é que há demasiada gente em Portugal para quem a justiça, nestes casos, só importa na medida em que depene alguém da plumagem do poder. Consumada a humilhação ritual, agora que Salgado já não é presidente do BES e pagou uma caução “milionária”, até talvez estejam dispostos a desinteressar-se da presa – a menos, claro, que o banqueiro decida “dizer o que sabe”, e então sim, todos hão-de querer ver os novos episódios, à espera que outros personagens rolem no esterco. Acontece que isto não é ter sentido de justiça. Isto é apenas o desenfado da plebe no circo. E deste ponto de vista, a justiça que temos é a mais adequada.

O que mais nos deve importar neste assunto, em termos de debate público, não é tanto a pessoa de Ricardo Salgado, mas o sistema de intervencionismo estatal e de promiscuidade entre política e negócios que gerou este “banqueiro do regime” e que, se nada mudar, há-de gerar outro. O resto deveria ser com juízes e advogados.

PS. Para benefício dos dois leitores que, na caixa de comentários, disseram não entender o texto, é com muito gosto que explico outra vez. Este processo de Ricardo Salgado é demasiado importante por duas razões: primeiro, pelos crimes e irregularidades que estão em causa, e que já abalaram a confiança no nosso sistema bancário; segundo, pelo modo como este caso pode ajudar a iluminar o sistema de poder a que o país esteve submetido em determinado período da nossa história. Por tudo isso, seria trágico que o descrédito da justiça, que é um facto, e desejos confusos de vingança político-social se conjugassem para turvar as águas, ajudando Salgado a fazer agora de “vítima” e preservando velhas opacidades.

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