Pedro Passos Coelho, o actual primeiro-ministro, não pagou impostos (eufemisticamente intitulados “contribuições”) à Segurança Social entre 1999 e 2004, período em que foi trabalhador independente. Como não tinha nesse período um contrato por conta de outrem como fonte principal de rendimento, estava obrigado a fazê-lo. Entretanto, face à divulgação da notícia, Passos Coelho achou por bem fazer o pagamento, apesar de a tal já não estar legalmente obrigado, por a dívida já ter prescrito.

Na sequência das notícias sobre Passos Coelho, vieram também à tona notícias relativas a alegados incumprimentos passados de António Costa, o actual líder do maior partido da oposição, no que diz respeito à contribuição autárquica e Sisa. António Costa já veio entretanto desmentir as notícias sobre as alegadas irregularidades que, para já, têm merecido muito menos destaque e interesse investigatório por parte dos jornalistas.

Dado a natureza do tema, vale a pena recordar também que, por exemplo, António Vitorino apresentou a sua demissão em 1997, quando era vice-primeiro-ministro, na sequência de uma investigação jornalística que apontava igualmente para alegadas irregularidades de natureza fiscal numa transacção imobiliária. O episódio não impediu que Vitorino chegasse dois anos depois a comissário europeu nem ao desenvolvimento da sua fulgurante carreira de advogado que se seguiu. Aliás, António Vitorino é hoje um dos mais referidos presidenciáveis na área do PS no caso de António Guterres decidir não avançar.

Nesta, como em outras questões, faz sentido que os padrões de exigência aplicados a políticos sejam maiores do que aos cidadãos comuns, mas o problema central neste caso é a dimensão do Estado e a sua voracidade fiscal, que assume com preocupante frequência contornos para-totalitários. Ter um Estado que vive muito acima das possibilidades do país acarreta a imposição de uma carga fiscal muito acima das possibilidades dos contribuintes. A busca incessante do aparelho de Estado por mais recursos implica por sua vez uma brutal e crescente assimetria de poder entre a máquina fiscal e o cidadão comum.

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Assim, a Autoridade Tributária (uma designação que em si mesma é já todo um programa…) que impõe prazos e obrigações declaratórias aos cidadãos é a mesma entidade que frequentemente não cumpre prazos e falha nas notificações. Acresce que, por via do alegado “combate à evasão” (o tal que supostamente propiciaria baixas de impostos que ainda ninguém viu), o ónus da prova está hoje cada vez mais invertido, de tal forma que em muitos casos, na prática, é já o cidadão que tem de provar a sua inocência face à máquina fiscal.

Ayn Rand resumiu bem a situação que daqui resulta numa marcante passagem do seu livro Atlas Shrugged:

«“Did you really think we want those laws observed?” said Dr. Ferris. “We want them to be broken. You’d better get it straight that it’s not a bunch of boy scouts you’re up against… We’re after power and we mean it… There’s no way to rule innocent men. The only power any government has is the power to crack down on criminals. Well, when there aren’t enough criminals one makes them. One declares so many things to be a crime that it becomes impossible for men to live without breaking laws. Who wants a nation of law-abiding citizens? What’s there in that for anyone? But just pass the kind of laws that can neither be observed nor enforced or objectively interpreted – and you create a nation of law-breakers – and then you cash in on guilt. Now that’s the system, Mr. Rearden, that’s the game, and once you understand it, you’ll be much easier to deal with.”»

Para quem leu o livro, é impossível não recordar esta passagem quando se assiste, no actual contexto, a nova discussão sobre a criminalização do enriquecimento “ilícito” ou “injustificado”. O caminho rumo à total inversão do ónus da prova e o avanço gradual de mecanismos totalitários de controlo e repressão – sempre em nome, claro, da transparência e do combate contra a corrupção – vai assim avançando paulatinamente. Cada novo episódio constitui uma semente adicional para a demagogia e para o populismo e, passo a passo, vamos caminhando até que todos sejamos, por definição, criminosos face ao Estado.

Não sairemos deste perigoso caminho enquanto não percebermos que a verdadeira miséria moral é termos políticos que ao mesmo tempo que aumentam o peso do Estado e o seu poder para interferir nos mais diversos sectores da sociedade se manifestam publicamente preocupados com a corrupção. Uma boa ilustração simbólica deste triste estado de coisas é a recente notícia de que funcionários da Segurança Social alegadamente vendiam a empresas em dificuldades atestados falsos nos quais se assegurava que a sua situação contributiva estava regularizada, de forma a que pudessem cumprir as condições para se apresentarem a concursos públicos ou a fundos europeus.

O mais preocupante no actual contexto não são os eventuais pecadilhos fiscais de Passos Coelho, Costa, Vitorino ou outros políticos. O que é realmente grave é que todos contribuíram, à sua maneira, para construir e manter um sistema que se assemelha cada vez mais a uma ditadura fiscal em que todos os cidadãos são culpados até prova em contrário.

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa