Sei de um colega que auscultava aos doentes o local onde se queixavam de dores, fosse ele o peito, a cabeça ou o joelho. Quem me falou do caso fê-lo com a bonomia de quem considera a ideia excêntrica mas interessante ou, na pior das hipóteses, inofensiva. Eu confesso que a considero brilhante, sobretudo porque o meu colega, além de auscultar cabeças e joelhos, cumpria escrupulosamente a ortodoxia do exame médico e aplicava as panaceias que entendia necessárias. A estranha auscultação predispunha o doente para a cura. A ciência médica curava a doença. E o meu colega juntava dois mundos que há 200 anos andam às avessas: a análise fria da maleita e a atenção calorosa ao homem que a sofre.

Digo 200 anos porque foi no início do século XIX que a doença deixou de ser um desequilíbrio de humores para ser um desarranjo de orgãos (Morgagni) ou dos tecidos que os compõem (Bichat). As teses que atribuíam a doença a perturbações gástricas ou distúrbios dos nervos foram esquecidas. Schwann demonstrou que todos os organismos vivos eram constituídos por células. E um jovem químico alemão, Friedrich Wöhler, produziu em laboratório, por puro acaso, ureia, uma substância até então encontrada apenas na urina. Ficava demonstrada a essencial identidade entre composto orgânicos e inorgânicos e, de passagem, encerrada uma velha polémica entre “vitalistas” e “químicos animais”. Um entusiasmo positivista invadiu escolas médicas e consultórios. Os poucos que teimaram em ver a doença como desequilíbrio de forças vitais foram ignorados. A doença era material e local, classificável em entidades nosológicas perfeitamente definidas. Não se pode negar mérito a esta concepção. Foi ela que permitiu identificar agentes patogénicos, afinar ferramentas diagnósticas e desenvolver tratamentos que, paulatinamente, tornaram, no nosso tempo, a ideia de cura um hábito e a ideia de incurabilidade uma aberração, pela raridade. Mas a medicina, que antes era sobretudo trabalho à cabeceira do doente, feito de atenção e cuidado, tornou-se nestes novos tempos um combate solitário, em que ao médico compete combater a doença e ao doente tão só deixar-se ir, arrastado até à cura pela marcha triunfal da ciência.

Mas não há dois doentes iguais. Nem, em boa verdade, duas doenças iguais. Mais: nem todas as pessoas com doença são doentes. E nem todos os doentes apresentam doença. Está-se doente quando se sofre com a doença que se tem. Está-se doente quando se sofre, mesmo sem doença. Pode ser de solidão, ou pobreza, ou desilusão. É difícil encaixar esta ideia em consultas de 20 minutos. Se se inquirir os velhos que andam pelos centros de saúde, a queixa mais frequente não é o tempo que esperam pela consulta e sim o pouco tempo que a consulta demora. O pouco tempo que se lhes dá.

Não digo que a solução deva passar pelo expediente do meu colega. Mas há-de andar lá perto. Façam-se os exames e receitem-se as pílulas. Mas ouçam-se os doentes. Fale-se com eles em linguagem que eles entendam. Se os médicos o não fizerem, outros o farão.

Médico patologista

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