Já temos encontro marcados com eles. Vai ser a 23 de Abril e a 7 de Maio do próximo ano. Eles, os sem dentes, estão à nossa espera nas primeira e segunda volta das presidenciais francesas. E convém que não se repita o mesmo exercício de mediatismo esclarecido que marcou a cobertura das eleições norte-americanas.

Recordemos: o mediatismo esclarecido, com os seus “robespierres”, primeiro escarneceu e depois irritou-se com os deploráveis de Trump. Mas os sem dentes de Le Pen já estão à nossa espera. É melhor ouvi-los. Perceber o que são as suas vidas. Os seus medos. Ou a insistirmos na atitude do “medático esclarecido” mais uma vez, diante dos resultados eleitorais, acabaremos na choradeira incrédula do costume, nas patéticas manifestações de “democratas tão democratas que não aceitam os resultados das urnas” e com a CML a mandar fazer novos cartazes que, pelo menos, se espera não tenham erros gramaticais, matéria em que os franceses seja qual for a sua área política não têm qualquer sentido de humor.

É a Hollande que devemos a expressão “Os sem dentes” para designar os pobres. Para sermos honestos, mais do que a Hollande é à sua por assim dizer atribulada vida conjugal que devemos ter ficado a conhecer a forma por que o actual presidente francês se refere àquelas pessoas que não têm sobre a segurança, a família e o multiculturalismo as mesmas ideias que ele, Hollande, ex-messias da esquerda europeia. Para cúmulo estas pessoas são pobres, vestem-se mal, não têm charme e, ao contrário dos árabes, dos negros ou da “gens du voyage”, estão do lado errado da História: nenhum sociólogo os considera vítimas de uma qualquer fobia ou ismo. As vidas deles são apenas o resultados da sua própria ignorância.

O que tem a vida conjugal de Hollande a ver com isto? Com os sans dents nada. Mas com Valérie Trierweiler muito. Conhecemos Valérie Trierweiler como “companheira” ou “mãe dos filhos” de Hollande quando este chegou ao Eliseu (as designações para as pessoas que retiram todas as vantagens do casamento mas nunca se casam são sempre tão pirosas quanto imperfeitas). Um dia Valérie foi trocada por Julie Gayet mas Valérie vingou-se à grande e à francesa escrevendo um livro em que revelou a intimidade de François Hollande. Mas a revelação que mais perturbou os franceses não remetia para a vida sexual do actual presidente – na prática uma relativa pasmaceira quando comparada com a de Miterrand invariavelmente a expensas do contribuinte francês! – mas sim o facto de este, uma vez longe dos jornalistas, reservar o epíteto “sans dents” para se referir a boa parte daqueles de que também é Presidente e que, lendo, por exemplo, a imprensa portuguesa, acreditaríamos serem também os seus eleitores: operários, trabalhadores, desfavorecidos…

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Na verdade não são. Eles, os sans dents, são aqueles que raramente se vêem, menos vezes ainda são entrevistados mas acabam a fazer Marine Le Pen subir nas sondagens. E podem fazer dela presidente da França – aquela mania do “pela primeira vez uma mulher” também se aplica neste caso? – caso se mantenha esta espécie de síndroma de alienação da realidade que atravessa presentemente o discurso de jornalistas, comentadores e analistas. Por exemplo, quantas notícias lemos sobre as agressões acontecidas em Outubro deste ano em Viry-Châtillon? Nem se pedem reportagens no local. Uma chamada telefónica chegava. Pois é, não soubemos nada ou quase nada. E contudo em Viry-Châtillon quatro polícias foram atacados e sovados. Dois ficaram com queimaduras gravíssimas. Note-se, não estamos na Síria mas sim a 20 quilómetros de Paris. Mas se estivessem na Síria talvez fossem alvo de maior interesse.

Já lá vai tempo em que estas agressões aconteciam no âmbito de intervenções policiais. Agora multiplicam-se os casos em que polícias que estão a fazer ronda são agredidos ou atraídos a ciladas, como aconteceu em Viry-Châtillon: os agentes acabaram cercados em pleno dia por um bando de encapuçados que partiram os vidros dos carros policiais e em seguida lançam lá para dentro cocktails Molotov. Quando os polícias saíram dos carros para se libertarem das chamas foram o espancados…

Pouca sou nenhumas notícias tivemos em Portugal sobre Viry-Châtillon. Tal como pouco ou nada ouvimos sobre as manifestações de polícias em protesto contra com o calvário judicial que em França aguarda os agentes que recorrem às armas já nem tanto para defender as populações mas apenas a si mesmos. E o que soubemos sobre o surto de agressões extremamente violentas a professores e funcionários em vários liceus franceses, isto apenas em Outubro deste ano? Não faltam cocktails Molotov, rostos tapados, maxilares partidos (de professores ou funcionários, naturalmente), instalações destruídas… mas nada.

Igual vazio imperou sobre Calais: durante três anos, Calais, com pouco mais de 75 mil habitantes, viu chegar milhares de imigrantes que, na impossibilidade de passarem para o Reino Unido, por ali ficaram amontoados, com os problemas inerentes a uma concentração anárquica de homens jovens, desligados das suas famílias e sem ocupação. Escrevia-se sobre as más condições desses acampamentos. Denunciava-se a falta de apoios para esses homens a quem não tardou se passou a chamar refugiados. Criticavam-se as autoridades (francesas e inglesas, claro, porque as dos países desses homens não existem para efeitos de responsabilidade) por nada fazerem. A Calais chegavam autocarros com manifestantes que faziam declarações repletas de referências a leis, tratados e convenções sobre os direitos dos migrantes.

No fim do dia os manifestantes entravam de novo nos autocarros, regressavam às suas universidades e associações. Os habitantes de Calais esses ficavam com as suas casas e bens desvalorizados, sem as receitas do turismo e a ver os investimentos fugir da zona. Falar da economia ainda era possível mas de insegurança parecia mal. Quando os acampamentos de Calais começaram a ser desmantelados lá tivemos as reportagens emotivas sobre os imigrantes agora refugiados. Já os habitantes de Calais continuaram sem suscitar curiosidade nos jornalistas. E quando dias depois as tendas começaram a florescer em Paris o desinteresse pela opinião dos residentes naqueles quarteirões manteve-se.

Podia continuar a dar exemplos. Sigo regularmente a imprensa francesa e casos destes são quotidianos. Há dias em que me interrogo se já ninguém sabe francês, se é má fé, preconceito ou simplesmente ignorância. Porque algo terá de explicar esta fuga da realidade cujo momento épico acontece quando, perante os resultados eleitorais naquele país, começam com os transes da indignação e os exorcismos do racismo e da xenofobia para explicar o voto na Frente Nacional. O que tem distinguido a Frente Nacional não são as sua soluções para os problemas mas sim o falar dos problemas. Porque os problemas, existem embora mal se vejam dos bairros privilegiados em que se movem políticos, jornalistas, universitários, tecnocratas… Ou seja a nova aristocracia.

Apesar de a eleição de Trump ser vista como uma boa notícia para Marine Le Pen essa conclusão não é necessariamente óbvia. Para já porque é de esperar desde logo uma maior mobilização do eleitorado, inclusivé do que está zangado com Hollande. Depois talvez muitos leitores façam uma avaliação mais cuidadosa das consequências no voto em candidatos que se dizem fora do sistema. E por fim, perante o falhanço estrondoso do mundo da comunicação no acompanhamento das eleições norte-americanas, é de esperar que dentro de meses não se repita o mesmo erro. Ou não sendo isso possível, que pelo menos sejamos poupados às manifestações de incredulidade e espanto perante os resultados eleitorais.

Aqui só não vê quem não quer.