Em finais 2015 havia alternativa, íamos virar a página da austeridade, era todo um mundo novo que se prometia, feito de mais dinheiro no bolso de todos, porque o anterior Governo era um malvado que, vá-se lá saber porquê, queria tirar-nos o dinheiro todo e estava sempre a falar no défice das contas pública e na dívida. Havia dinheiro a rodos e ai de quem se atrevesse a alertar que não era possível. Seria devidamente insultado e perseguido pela turba anónima das redes sociais, classificado de “pafiano” ou educadamente insultado como “liberal”.

Em finais de 2017 estamos a ser acusados de viver na ilusão de que é possível dar tudo a todos, porque afinal não é. E não é por maldade, é porque afinal, pasme-se, não há dinheiro e não é possível apagar o passado, eliminar a crise e a troika. Mas isso não era exactamente o problema de 2015?

Esta é uma semana histórica, aquela em que António Costa usa a mesma expressão utilizada um dia antes pelo Presidente da República – ilusão – para nos dizer, como Marcelo Rebelo de Sousa tinha afirmado um dia antes, que “o tempo não volta para trás”. Tudo desencadeado pela reivindicação dos professores no sentido de recuperarem os anos de congelamento das suas carreiras – realizada duas vezes, exactamente nas duas crises que tivemos desde o início do século XXI.

Recordemos a sequência das declarações.

Presidente da República no dia 20 de Novembro, citado pelo Público: “A crise deixou marcas profundas, é uma ilusão achar que é possível voltar ao ponto em que nos encontrávamos antes da crise – isso não há!(…) A segunda ilusão é achar que se pode olhar para os tempos pós-crise da mesma forma que se olhava antes [para os problemas], como se não tivesse havido crise. A crise deixou traços profundos e temos de olhar para eles”.

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Primeiro-ministro dia 21 de Novembro: “A ilusão de que é possível tudo para todos já não existe isso” e “se queremos investir mais na qualidade da educação, na qualidade do sistema de saúde e nos serviços públicos não podemos consumir todos os recursos disponíveis com quem trabalha no Estado”.
Repare-se que há expressões quase iguais. Um diz “isso não há”, o outro diz “não existe isso”. Concertados ou não, pouco importa.

O que importa é que entrámos numa nova fase em que afinal há escolhas difíceis, em que o mundo não se divide entre os bons que nos aumentam o rendimento e os maus que nos tiram rendimento.

Esta foi a semana em que ouvimos o primeiro-ministro avisar-nos que não podemos ter tudo, que temos de escolher entre mais salários para a função pública ou melhor saúde e educação e que não podemos pôr em causa o que já conquistamos em matéria de redução do défice público. Afinal a “austeridade” não acabou. Como já sabia quem acompanha os números, o rigor orçamental teria de ser bastante apertado.

Temos todas as razões para estarmos satisfeitos. Passou a era do ilusionismo e entrámos na era do realismo. Um e outro ditados pela política enquanto arte conquistar e manter o poder.

Esta mesma semana, numa análise ao que se passa nos Estados Unidos, um jornalista norte-americano salientava que se se tivesse sabido há um ano o que se sabe hoje sobre o envolvimento da equipa de Donald Trump com a Rússia, este já não era presidente dos Estados Unidos. E comparava o processo com o caso de Bill Clinton com Monica Lewinsky. Se se tivesse sabido tudo de uma vez, Clinton teria caído.

Tudo se resume a dar as más notícias em pequenas doses, tudo se resume a uma boa e eficaz gestão da informação, a uma competente comunicação e relações públicas.

António Costa, Mário Centeno e o presidente da República sempre souberam que não havia dinheiro para se satisfazerem as expectativas que foram criadas com expressões como “virar a página da austeridade” e “reversões”. Tudo ia ser revertido, a privatização da TAP, os cortes salariais da função pública, o aumento de impostos…

Reversão, usando o dicionário, quer dizer “devolução” e “regresso”. Criaram-se de facto expectativas de que era possível dar tudo a todos. A ideia de que estávamos ricos foi até criada por algumas medidas totalmente desnecessárias, como a redução do IVA da restauração de 23% para 13% a 1 de Julho de 2016 – imagine-se a receita que se teria neste momento com a dinâmica do turismo.

Claro que quem conhecia os números das finanças do país sabia que o caminho seguido ia dar a um abismo, caso não se fizesse a reversão das reversões.

A recuperação da economia europeia e com ela a portuguesa, a continuada redução das taxas de juro, uma Comissão Europeia mais benevolente e uma táctica de gestão orçamental baseada em cativações históricas, só viáveis pelo apoio do PCP e do Bloco de Esquerda, deram ao Governo uma margem financeira de ilusionismo de dois anos. Esse tempo parece ter acabado agora.

Mas para António Costa acaba no tempo certo, no momento em que pode explicitar a austeridade, tal como Trump consegue agora manter-se no poder apesar do envolvimento da Rússia.

O primeiro-ministro tem um historial junto de Bruxelas de cumpridor das regras – mais ou menos, é certo, mas no curto prazo o défice estrutural não nos afecta em nada e a maioria nem sabe o que isso quer dizer. E em Portugal tem o Bloco e o PCP no bolso e o PSD sem líder. Reúne por isso todas as condições para mostrar o estado em que ainda está o país merecendo até dos portugueses alguma compreensão. Afinal conseguiu reduzir o défice público e repor salários aos funcionários públicos. Com sorte os portugueses também acreditam que foi graças ao Governo que os turistas vieram para Portugal, a economia cresceu e o emprego aumentou.

Além disso, há sempre medidas orçamentais de mais receita ou menos despesa que sejam invisíveis. Veja-se o caso das alterações ao regime simplificado que, com grande probabilidade, vai ter como resultado um aumento de impostos. Mas são poucas as pessoas afectadas e não estão organizadas nem em sindicatos nem em associações. Melhor ainda, o Governo pode sempre dizer que está a combater os ricos, colando esse regime de IRS aos advogados e médicos.

Vivemos dois anos a aproveitar a onda do crescimento e a fazer cair a austeridade nas faces ocultas da sociedade. Com a promessa das reversões chegámos agora ao ponto em que é cada vez mais caro reverter. Não é obviamente possível voltar a 2007, porque hoje temos uma dívida que preocupa quem nos financia e até porque ainda nem chegámos ao rendimento que tínhamos nessa altura.

Foi preciso sermos confrontados com a revindicação dos professores para ouvir o Governo dizer, implicitamente, que não há dinheiro, que não podemos ter ilusões. Antes tarde do que nunca, especialmente porque o caminho que estávamos a seguir nos condenaria, mais cedo ou mais tarde, ao desastre.

Esta nova via dá-nos mais garantias mas continuamos no fio da navalha. Porque é preciso escolher um caminho que faça a mudança que nos levou para os braços da troika. E isso, este Governo pode não ter condições políticas, nem vontade, para o fazer.