Portugal é assim: quando alguém propõe uma reforma, dispara-se primeiro e pergunta-se depois. No resto do tempo queixamo-nos de nada mudar, mas desejando intimamente que nada mude mesmo. A mais recente vítima desta paixão rezingona pelo status quo foi António José Seguro.
Começou por sê-lo quando convocou eleições primárias no PS. Durante anos, os especialistas de todos os temas queixaram-se de que os partidos estavam fechados e tomados pelos aparelhos; quando agora se colocou a hipótese de romper com a lógica aparelhística através de primárias, a ideia passou a ser apresentada como um “golpe” e não faltaram vozes a vaticinar a sua inexequibilidade. Passados três meses e quando estamos a poucos dias da votação, ouvimos os mesmos a dizer que, afinal, depois desta experiência, os outros partidos vão ter de fazer também o mesmo.
O que significa que durante este processo de falou muito, disse-se uma coisa e o seu contrário, mas nunca se debateu o essencial, isto é, se este mecanismo vai realmente permitir uma maior abertura dos partidos à sociedade civil ou se apenas amplifica os fenómenos de cacicagem aparelhística. Porque esse será o escrutínio a fazer. Mesmo assim algo mudou, e se mudou isso ficou a dever-se a Seguro. Haja a frontalidade de o reconhecer.
Passada a fúria do comentariato contra as primárias, temos agora a fúria do mesmo comentariato com a proposta de revisão de lei eleitoral. Mais uma vez parecia haver um consenso prévio: a forma como elegemos os nossos deputados transforma-os em meras correntes de transmissão das lideranças partidárias, sem ligação aos seus eleitores. Mas quando se propõe, como Seguro propôs, que se deve “garantir aos eleitos a escolha do seu deputado”, a resposta imediata é que isso se traduziria num favor ao PSD e num prejuízo dos pequenos partidos. Com esta tirada demagógica acaba-se logo com a discussão e passa-se ao próximo tema.
Na verdade o que Seguro veio propor vai ao encontro de muito do que tem sido ventilado nos últimos anos. Primeiro, por defender que se encontrem mecanismos para aproximar eleitores de eleitos. Depois, por aceitar o princípio da redução do número de deputados, o que torna possível um acordo com o PSD que há muito faz disso questão de honra. O facto de a sua proposta não ser bem uma proposta, mas apenas a enunciação de alguns princípios, não permite discutir os seus detalhes, mas isso não justifica a forma como se tratou de colocar uma pedra sobre o assunto, como se fosse um não-assunto, como se tudo estivesse bem no nosso sistema político e na nossa democracia parlamentar de base representativa.
Recordo-me de, para aí há uns 15 anos, ter participado num debate promovido pelo PS onde um entusiasmado António Costa discutia a forma de melhorar o nosso sistema eleitoral. Foi um debate que não teve grande sequência, pois nunca PS e PSD foram capazes de encontrar o mínimo de terreno comum para uma reforma que todos dizem necessária. Não é altura de tentar reconstituir todo o rosário de propostas e debates, mas a forma como se procedeu à liquidação sumária da proposta de Seguro exige que, no mínimo, se desfaçam algumas das falácias usadas neste linchamento sem contraditório.
A primeira falácia é a de que uma diminuição do número de deputados representaria necessariamente uma diminuição da representatividade dos pequenos partidos. Não é verdade. Ou melhor, só é verdade se tudo o resto se mantivesse igual na lei eleitoral, o que não era propósito da proposta. Com os actuais círculos eleitorais e com o método de Hondt, diminuir o número de deputados prejudicaria mais os pequenos partidos, mas é possível imaginar múltiplas soluções que permitiriam aumentar a sua representação e, ao mesmo tempo, dar aos eleitores mais voz na escolha do seu deputado. Vou só dar um exemplo: se metade dos futuros 181 deputados fossem eleitos em círculos uninominais maioritários e a outra metade num círculo nacional único, é possível imaginar vários métodos de eleição (voto duplo no círculo uninominal e no círculo nacional; círculo nacional reunindo todos os votos que, nos círculos uninominais, não se tivessem traduzido em eleição de deputados, só para citar dois mecanismos eleitorais diferentes mais possíveis) dos quais poderia até resultar uma maior representação dos pequenos partidos.
A segunda falácia é que, com menos deputados, diminuiria a representação das regiões menos povoadas. É um argumento espantoso quando sabemos que, hoje, muitos dos deputados por essas regiões são “pára-quedistas” que apenas representam as direcções partidárias. Qualquer eleitor sentir-se-á sempre melhor representado por um deputado que conhece e que sabe que elegeu do que por um carrossel de representantes sem qualquer ligação aos círculos pelos quais foram eleitos e saem e entram de São Bento ao sabor de conveniências várias.
A terceira falácia é a ideia de que, proporcionalmente, já temos um parlamento relativamente pequeno. Se tomarmos o rácio deputado/eleitores e considerarmos apenas as câmaras baixas dos parlamentos (em Portugal só temos câmara baixa), verificamos que se diminuíssemos o número de deputados para 181 continuaríamos a estar perto da média de países com a nossa dimensão (ficaríamos entre a Bélgica e a República Checa, com valores que não seriam muito diferentes dos da Hungria e Áustria). Só comparando com os rácios de países onde existem também câmaras altas (como um Senado) é que Portugal se afastaria dessa média, mas não me parece, honestamente, que essa comparação faça sentido.
Por fim uma questão que tem sido iludida mas é fundamental: há uma relação directa entre o sistema eleitoral e o sistema de partidos, e isso não deve ser iludido. Mais: não há mal nenhum em discuti-lo. Basta pensar no seguinte: uma possível menor representação dos partidos pequenos tem como contrapartida aumentar a possibilidade de os maiores partidos obterem maiorias estáveis de governo. Se isso acontecesse (e, como já vimos, não é obrigatório que aconteça) seria bom ou mau para o sistema político? Não valerá a pena discuti-lo, sem preconceitos?
Como se vê, a discussão é complexa, tem muitas ramificações e muitas implicações. Nada a justificaria se estivéssemos satisfeitos e tranquilos com o sistema que nos deu este tipo de parlamento e este tipo de partidos, mas não é o que sucede. É por isso que a virtude da proposta de Seguro é apontar no sentido correcto – mais proximidade entre eleitores e eleitos, com menos deputados e mantendo o princípio constitucional da proporcionalidade. O seu defeito é não ser concreta, não detalhar com isso se consegue. É um começo, um começo deficiente mas um começo que é melhor do que nada.
Diz muito sobre o enviesamento do nosso debate político que estas propostas sobre a lei eleitoral tenham sido trucidadas sem discussão e pouco tenha sido dito sobre o pacote sobre incompatibilidades também proposto por Seguro que, do meu ponto de vista, prolonga e agrava a deriva populista que tende a olhar para os políticos como potenciais criminosos. É um caminho que se iniciou – é bom recordá-lo – no tempo de outro político bem intencionado, Fernando Nogueira, mas que tem feito com que seja cada vez mais difícil recrutar pessoas capazes e honestas para cargos públicos. É isso que queremos? É isso que resolve os nossos problemas de falta de ética e de promiscuidade? Não me parece.
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