Não sei bem por onde devo começar, mas talvez a melhor forma seja sugerir aos senhores deputados que verifiquem o ano em que estão no calendário. Devem ter algum à mão, suponho. Assegurem-se pois que estamos em 2015. Isso mesmo: 2015. Não estamos em 1972, ano em que Marcelo Caetano mudou o nome de censura para “exame prévio”. Também não estamos em 1975, ano em que Vasco Gonçalves assinou uma lei que, entre outras disposições, estabelecia o número de palavras que os jornais tinham de dedicar aos programas de cada partido, permitindo até que fossem estes a escrever esses artigos.

A censura do Estado Novo, instituída formalmente em Portugal por uma lei de 1933, aprovada pouco depois da própria Constituição, passou a chamar-se pudicamente “exame prévio” quando o “marcelismo” quis criar uma ilusão de abertura. Mas era isso mesmo: apenas uma ilusão, porque ao mesmo tempo, na então Assembleia Nacional, a maioria dos deputados chumbava a proposta de Lei de Imprensa que Francisco Pinto Balsemão, então eleito no grupo que ficou conhecido como sendo a “ala liberal”, tinha preparado. Por isso não deixa de ser irónico, para não trágico, que deputados do PS, do PSD e do CDS pretendam, em 2015, ressuscitar a ideia de um “exame prévio”, desta vez não a artigos isolados ou “provas de página”, mais ao plano de cobertura das eleições de todos – repito: todos – os órgãos de informação. Lê-se e não se acredita, pelo que vale a pena citar na íntegra:

“Os órgãos de comunicação social que façam a cobertura jornalística do período eleitoral entregam à comissão mista que se refere no artigo 10º, antes do início do período de pré-campanha, o seu plano de cobertura dos procedimentos eleitorais, identificando, nomeadamente, o modelo de cobertura das acções de campanha das diversas candidatura que se apresentam a sufrágio, a realização de entrevistas, de debates, nos termos previstos no artigo 8º, de reportagens alargadas, de emissões especiais ou de outros formatos informativos, de forma a assegurar os princípios referidos no artigo 4º”.

O projecto prevê ainda que essa “comissão mista” fiscalizará “dia a dia” o cumprimento do referido plano, só ficando por saber se poderá instalar-se no andar que, até ao 25 de Abril, a comissão de “exame prévio” ocupava na rua da Misericórdia, aqui ao lado do Bairro Alto – onde então morava a maioria dos jornais lisboetas mas hoje já só moram o Observador e a A Bola. Não sei se haverá andares vagos no edifício, mas pode ser que a Associação 25 de Abril, que fica ali mesmo ao lado, possa ceder uma salita para tão importante vigilância “democrática”.

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Bem, não exageremos. Fiquemos apenas pelo que dizem os autores do projecto de de lei. Ou pelo que diz um deles, o único que falou, a deputada socialista Inês de Medeiros: para ela – e este é o seu principal argumento – a lei “não representa um aumento das limitações”, antes uma diminuição dos constrangimentos, quando comparada o decreto de lei de 1975.

Eu sei que Inês de Medeiros só nasceu em 1968 e, portanto, só tinha sete anos quando se realizaram as primeiras eleições em democracia, a 25 de Abril de 1975 (tal como sei que outro dos autores da proposta, o social-democrata Carlos Abreu Amorim, mesmo sendo ligeiramente mais velho, pois nasceu em 1963, anda por estes dias a lutar com o dilema moral de ter deixado de ser liberal, o que não deixa de ser perturbante já que este é um tema de liberdades fundamentais). Mas, ao saber isto, sei que não podem recordar-se, ao vivo, de como foi essa campanha inicial, seminal, e de como então ninguém sabia muito bem o que fazer e como fazer. Não havia sondagens que permitissem conhecer o peso relativo dos partidos. Ninguém sonhava que um dia se inventasse uma coisa chamada Internet, ainda menos redes sociais, e directos televisivos era coisa que praticamente só se fazia quando o Papa vinha a Fátima. O primeiro debate numa televisão só ocorreria muitos meses depois, entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, duraria mais de duas horas e os moderadores faziam as suas perguntas entre duas baforadas, já que fumavam continuamente. Era outro tempo, outro mundo.

Não surpreende por isso que a lei de 1975 tivesse criado regras muito estritas e burocráticas de cobertura das campanhas eleitorais. A nossa democracia ainda não sabia como funcionava uma democracia. Por isso, conforme os anos foram passando, essa lei, com que ainda me lembro de lidar em campanhas eleitorais durante a década de 1980, foi caindo no esquecimento. Nunca ninguém a revogou, mas também nunca mais ninguém lhe ligou. Passou a ter tanta importância como o prefácio da nossa Constituição: era História, não era Direito.

Assim foi até que, aqui há uns anos, a Comissão Nacional de Eleições, tomada por um zelo insensato e fora do tempo, foi buscar ao baú da legislação esquecida essa lei de 1975 e entendeu passar a aplicá-la à letra. O resultado foi o fim dos debates televisivos, algo que já pesou de forma muito negativa nas últimas eleições europeias e autárquicas.

Confrontado com esta situação, que devia ter feito o Parlamento? Revogar essa e outras leis do mesmo teor, arrumá-las de vez nas prateleiras que só arquivistas e investigadores vasculham. As dezenas de campanhas eleitorais que já houve em Portugal desde essa experiência inicial, e irrepetível, de 1975 – nesse tempo em que Mário Soares e Sá Carneiro saiam à rua a colar cartazes e os candidatos multiplicavam “sessões de esclarecimento” em salas de associações recreativas à pinha – mostraram que os órgãos de informação foram encontrando as melhores formas de não só retratar, como de promover, o debate democrático. Há muito que não o fazem contando centímetros de texto ou minutos de telejornal, mas seguindo critérios jornalísticos que permitem equilibrar a necessidade de dar informação sobre todas as candidaturas com o dever de escrutinar com maior detalhe as propostas e as campanhas dos partidos com maior representatividade, pois é neles que a cidadania também está mais interessada. Mais: sempre que surgiu um fenómeno político novo, do PRD nos idos de 1985, ao Bloco no início deste milénio, os profissionais da informação detectaram-no a tempo de lhe prestarem a atenção que se provaria merecerem.

Devo contudo dizer que tudo o que escrevi até aqui é apenas “técnico”. O essencial é a questão de princípio, e essa é que não compete a qualquer entidade pública, muito menos a uma entidade com componentes políticas e, no limite, partidárias, aprovar o que quer que seja das escolhas editoriais de um órgão de informação. A liberdade é a liberdade, não é igualdade nem equidade, mas é condição para que estas possam existir. Quando queremos limitar a liberdade a critérios administrativos em nome de uma alegada equidade ou igualdade, acabemos com menos liberdade e, também, com menos equidade e igualdade. Foi isso que aconteceu nas últimas campanhas europeias e autárquicas, prejudicando em especial pequenas forças políticas emergentes ou grupos de independentes. É isso que pode suceder numa escala inimaginável se os órgãos de informação privados levarem por diante a sua ameaça de não cobrirem informativamente a campanha eleitoral.

Mas há mais. Ao contrário do que se volta a pretender nesta lei, o pluralismo da comunicação social não se assegura criando regras para que cada órgão de informação trate assepticamente uma campanha eleitoral ou uma iniciativa partidária. Bastaria aos senhores deputados tirarem as palas que os impedem de ver para além do seu micromundo, e olharem para Espanha, para França, para Inglaterra, para os Estados Unidos, para qualquer democracia evoluída, e logo perceberiam que o pluralismo não se assegura garantindo que todos os órgãos de informação dão o mesmo espaço e destaque às diferentes candidaturas, mas dando a esses órgãos de informação a liberdade para terem olhares diferentes sobre a realidade, até prioridades distintas, e, mesmo mantendo a sua independência e objectividade, não deixam de por isso de realizar coberturas eleitorais que até chegam a ser contrastantes e, por isso, complementares e mais ricas.

É assim nas democracias adultas. É assim nos países onde se respeita a liberdade, em particular a liberdade de imprensa. Mesmo onde existem entidades de regulação, não é com estes temas que elas se preocupam – porque estes temas não existem a não ser em cabeças cheias de teias de aranha. Muitas teias de aranha.

Recordo por isso que o Observador foi lançado numa segunda-feira, 19 de Maio de 2014, seis dias antes das eleições europeias de 25 de Maio. Mesmo assim fizemos questão de, na véspera do lançamento, a 18 de Maio, realizarmos o único frente a frente entre os cabeças de lista dos dois principais partidos, Francisco Assis e Paulo Rangel, debate que difundimos em streaming no nosso pré-site, desafiando o black-out provocado pelas decisões da CNE. Não o fizemos por acaso, fizemo-lo por fidelidade aos princípios essenciais da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão.

Suspeito que, desta vez, não teremos de, mesmo que simbolicamente, mostrarmos a nossa discordância com a legislação em vigor. Primeiro, porque tenho esperança que vai haver algum juízo – não todo o juízo necessário e recomendável, mas o suficiente para enterrar esta loucura. Depois, porque não temos dúvida que qualquer condenação de algum órgão de informação com base naquelas normas infames não deixaria de terminar numa sucessão de humilhantes condenações do Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

Por isso, piedosamente, só posso repetir o que David Dinis já escreveu no seu 360º desta manhã; “Perdoai-lhes, Senhor, porque não sabem o que fazem”.