“A liderança de José Sócrates produziu não um movimento político mas sim um movimento que passo a designar pelos estético-daí. Imagine-se o caso mais bizarro, um daqueles casos que até Sócrates se ter tornado primeiro-ministro entendíamos ser impossível não só de acontecer mas sobretudo de ser defensável. Depois de devidamente imaginado, é só engolir a indignação e dizer, como se não fosse nada: e daí? Ao que tem sido possível observar em Portugal, após o primeiro “E daí?” não se pára mais. Cada “E daí?” é um patamar moral que se desce em relação ao anterior.”

Este é um excerto de um texto que escrevi em Maio de 2010. Não lhe altero hoje uma linha. Durante anos e anos de cada vez que se questionava a actuação de Sócrates lá vinha, insolente, um “E daí?” Pois chegou a hora de tirarmos daí as conclusões. A primeira é que António José Seguro é definitivamente um homem com azar no que aos calendários respeita. Tivesse a detenção de Sócrates acontecido alguns meses antes e António José Seguro continuaria como líder do PS. E líder reforçado pois não só António Costa não teria avançado, como o sector socrático que alavancou a candidatura de Costa estaria agora a braços com um António José Seguro reforçado, ou seja, capaz de finalmente os afastar do Largo do Rato.

A segunda e quase todas as outras conclusões passam por António Costa. É óbvio que Costa não parece disposto a seguir a estratégia de hipotecar o partido à declaração de inocência dos seus dirigentes, como sucedeu no processo Casa Pia. Estratégia que, recordo, obrigou o PS a enfrentar directamente a Justiça e a protagonizar momentos difíceis de entender numa democracia como os telefonemas para os responsáveis pela investigação ou o regresso de Paulo Pedroso à Assembleia da República.

Repetir hoje tal estratégia poderia ser suicida porque a relação do país com o PS está a mudar. E isso nada tem a ver com as intenções de voto: uma grande parte dos portugueses está disponível para apoiar um governo PS. Mas esse quadro pode ser comprometido caso o PS caísse novamente no erro de querer um tratamento diferenciado para si. Por isso Costa tem de conseguir calar rapidamente Mário Soares e demarcar-se daquela tertúlia que, após anos perguntando sobranceiramente “E daí?”, anda agora de estúdio em estúdio e de texto em texto semeando dúvidas sobre o local e a hora de detenção, o tempo do interrogatório ou as medidas de coação. Dúvidas essas que, em 2014, após o país ter assistido a casos e casos de corrupção sem que as respectivas detenções causassem a menor questão (antes pelo contrário tinha de haver prisões!) apenas levam a que se instile a ideia de que para os socialistas todas leis são boas desde que não se lhes apliquem.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Por ironia do destino, Costa, levado quase em ombros pelos históricos do partido, pode vir a ser o líder a quem cabe a espinhosa tarefa de explicar aos socialistas que na República não há partidos mais iguais que os outros. Essa não vai ser uma tarefa fácil para António Costa pois muitos daqueles que o apoiaram fizeram-no sobretudo porque acreditaram que ele era o homem capaz de colocar o PS no que entendem ser o seu lugar natural: o poder. Em boa verdade o PS por que muitos anseiam no Largo do Rato pouco tem a ver com ideologia e quase tudo com estatuto e nostalgia por aquele tempo em que as investigações paravam algures a meio da pirâmide do poder socialista. E em que denunciar a corrupção do PS se chamava traição como aconteceu a Rui Mateus quando revelou as ligações entre Mário Soares e o grupo Emaudio.

A isto acresce mais um problema, por sinal enorme, e uma vantagem mais ou menos razoável para o actual líder socialista. O problema chama-se diluição de culpas. O que quero dizer com isto? Tão simplesmente que nos casos em que a corrupção toca dirigentes partidários não raramente se assiste à tentativa de envolver os partidos naquilo que são casos pessoais. Basta seguir o calvário vivido em Espanha por Rajoy com Barcenas, o ex-tesoureiro do PP detido há algum tempo, para perceber o risco para o PS que advém de alguns dos arguidos tentarem desresponsabilizar-se alegando cumplicidades do partido.

A vantagem (alguma havia de existir) que a actual situação traz a António Costa é que tem aqui o motivo mais que suficiente não para apagar pessoas das fotografias, mas para as tirar da sua equipa, que em boa verdade é quase uma equipa de Sócrates sem Sócrates. Já o escrevi e repito: partindo do princípio de que Costa quer ganhar as próximas legislativas, Ferro Rodrigues foi uma péssima escolha para líder parlamentar.

Curiosamente esta crise pode ter trazido ao PS aquilo que lhe estava a fugir: um bom candidato presidencial. Com Sócrates passado à situação de “não está nem se espera” no Largo do Rato, Guterres sentir-se-á muito mais à vontade para dizer sim a uma candidatura presidencial onde o seu maior obstáculo eram os sectores jacobinos do PS, sectores esses que preenchem boa parte do universo socrático. Não é que esses sectores tenham desaparecido mas estarão bem mais contidos e entretidos com outras preocupações nos próximos tempos.

Em boa verdade, Portugal já não é o país em que a investigação à morte de Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa encalhava inevitavelmente na inconveniência de inquirir o que se passava com os fundos militares. Também já não é o país em que um PGR considerou que não se devia ouvir Mário Soares, a propósito do seu papel enquanto Presidente da República, na captação de financiamento para a Emaudio, um grupo de comunicação afecto ao PS.

Também já não é o país em que bastava semear dúvidas processuais para que a opinião pública começasse a duvidar da inocência das vítimas e da culpa dos arguidos como aconteceu no processo Casa Pia. Como há hábitos que custam a perder, mal chegaram as primeiras notícias sobre a detenção de Sócrates e já se inquiria sobre o local da detenção. A sério que preferiam que fosse detido em casa? E se lá estivessem os filhos? Ou a mãe?

Depois passámos para a questão do interrogatório em si mesmo cujo, para ser perfeito, havia de decorrer nos moldes aqui sugeridos pelo David Dinis: a investigação decorria em sigilo, não se perguntava nada, depois alguém ligava ao suspeito e dizia-lhe: olhe, o meu amigo foi ontem julgado por corrupção e foi considerado culpado.

Portugal é um país que, como todos, continua a poder ser enganado, mas neste fim de 2014 o engano tem de mudar de técnica. Ou então torna-se patético. Como o são neste momento esses “E daí?” que por aí continuam a andar à procura de alguém a quem, uns mais reverendos e outros mais obrigados, possam venerar. Ou na falta dele alguém a quem possam perguntar. como fizeram a Rui Mateus quando este denunciou o caso Emaudio: “Então, como é que se sente na pele de um traidor?”