Quando, no sábado passado, Salvador Sobral ganhou o Festival da Eurovisão, toda a gente começou a dizer que “nós tínhamos ganho”, que “nós éramos os melhores” e mesmo “os melhores dos melhores”. Nem o Presidente da República, nem o primeiro-ministro escaparam a esta absurda identificação. Pior ainda: indivíduos sem a mais leve autoridade na matéria não se coibiram de explicar publicamente a natureza e qualidades da música de Luísa Sobral que acharam “simples” (não é), “diferente” (de quê?) e com tanto “sentimento” que ia “directa ao coração” (um comentário idiota e nulo). Ora, como se sabe, “nós” como entidade colectiva não contribuímos coisíssima nenhuma para o sucesso de Salvador Sobral e da irmã, e nada nos permite usar esse sucesso como pretexto para uma nova sessão de gabarolice nacionalista, que só a consciência da nossa mediocridade e da nossa miséria justifica e provoca.

Os portugueses precisam de sinais de uma importância e de uma grandeza que a realidade lhes nega. E porque sofrem dia a dia com a realidade qualquer pequena distinção lhes serve para se evadirem dela: a selecção de futebol ganha o campeonato da Europa (nós somos formidáveis); Guterres, que falhou tristemente aqui, é eleito Secretário-Geral da ONU (nós somos superiores); Salvador e Luísa Sobral ficam em primeiro lugar no Festival da Canção (nós somos logicamente incomparáveis). Isto mata. Não quero dizer que não se deva retirar um certo orgulho e um certo consolo de proezas como a de Kiev. O que digo é que o patriotismo português não se manifesta senão por transferência para um ocasional herói ou grupo de heróis. Não se manifesta porque não pode pela satisfação com o sistema de justiça, ou com a estabilidade das finanças do Estado, ou com o crescimento da economia, ou com o exemplar ordenamento das cidades. Sem diminuir o mérito dos nossos heróis, que é deles e não nosso, era bom começar por pedir que nos déssemos a nós próprios o que nos falta e o que merecemos. A expressão “Portugal está na moda”, que o cavaquismo inventou, é um símbolo do nosso fracasso; a glória reflectida nunca ajudou ninguém.

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Só sexta-feira à noite percebi o que se estava a passar. O Presidente Marcelo, o primeiro-ministro, o presidente da Assembleia da República e a própria Assembleia enlouqueceram com Salvador Sobral. Não há a menor dúvida. E, para quem ainda duvide, basta ligar a televisão. Não me lembro de ver um espectáculo remotamente parecido (a Câmara dos Comuns, por exemplo, a aplaudir de pé Gardiner, Simon Rattle ou os Beatles). O populismo da classe dirigente portuguesa, toda ela, nunca desceu tão baixo. A pressa em roçar-se pela fama de um pobre cantor indefeso e desarmado mostra bem quem é esta gentinha da política, que Portugal inteiro despreza. Por um voto e um pouco de presuntiva simpatia, roubada ao próximo, vende unanimemente a sua dignidade e a dignidade das suas funções. O carácter, para ela, não passa de uma ficção. Agora sabemos quem nos governa.

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