Espaço mítico não sei o que significará no resto do mundo. Já na cidade de Lisboa esta expressão quer dizer local que graças a campanhas mediáticas se mantém inalterado, degradando-se por décadas. Noutros casos o espaço mítico foi adquirido ou intervencionado pela autarquia ou administração central que o mantêm de portas abertas sem verdadeiro uso ou com utilização desnecessária e desadequada.

Agora que começou o “Ninguém quer que o Jamaica acabe” venho dar conta do que nos costuma suceder quando nos acometem estes sobressaltos com o destino dos espaços privados. Pois, por estranho que possa parecer se os espaços forem públicos podem ser fechados ou escaqueirados à vontade que ninguém se incomoda. Veja-se por exemplo o silêncio que rodeou a destruição das piscinas de Keil do Amaral, no Campo Grande, e logo se percebe do que falo. E a indiferença perante a transferência, a 3 de Março de 2008, da Biblioteca do Exército que até então funcionava na chamada Livraria dos Paulistas? O que funciona agora nas magníficas instalações dessa biblioteca?

Mas voltemos à salvação dos espaços míticos. A primeira fase da salvação dos espaços míticos da capital teve como peça central os cinemas. Não havia cinema que estivesse para fechar que não gerasse uma comoção profunda entre todos os que queriam passar por membros do autodenominado mundo da cultura.

Lisboa tem hoje várias salas de cinema salvas da morte e resgatadas do desaparecimento. O que não quer dizer que tenham sido salvas de destinos igualmente trágicos. O caso mais emblemático de uma sala de cinema salva não se sabe bem de quê é o Cinema Paris. Devoluto há mais de 20 anos, o Cinema Paris só não cai porque está escorado. Por razões de segurança a Câmara Municipal de Lisboa mandou demolir o Cinema Paris em 2003 mas a comoção foi tal que rapidamente a autarquia desistiu da ideia e assim se salvou o Cinema Paris. Estamos em 2016, desconheço se o painel pintado por Paulo Guilherme ainda sobrevive na sala de fumo mas o Cinema Paris lá continua a desfazer-se. Naturalmente será a lei da gravidade a resolver o salvamento do Cinema Paris.

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Um pouco mais acima, no centro de Campo de Ourique, também temos outro cinema salvo. Falo obviamente do Cinema Europa. Para perceber em que se traduziu a salvação do Cinema Europa encerrado em 1981 nada como ler uma dessas páginas que promovem o imobiliário: “A Granvale adquiriu o espaço do antigo Cinema Europa em 2004, já degradado e desativado de qualquer atividade. O projeto inicial do anterior proprietário para a reconstrução do edifício estava, na altura, envolto nalguma polémica pública, mas em conjunto com a autarquia e as forças locais encabeçadas pelo movimento SOS Cinema Europa, conseguimos chegar a consenso, conta Miguel de Carvalho, um dos sócios da Granvale. O consenso prevê deste modo a reserva do piso térreo – com 800 m2 – para um espaço multifuncional que está a ser negociado com a autarquia e no qual poderão continuar a ser desenvolvidas atividades de índole cultural, mantendo a tradição do bairro nessa área e garantindo em simultâneo a indispensável rentabilização do projeto, reforça o promotor.
Por outras palavras: o promotor imobiliário vendeu por 1,424 milhões de euros o piso térreo do edifício construído no local do antigo Cinema Europa. E vendeu a quem? À CML. Como se a autarquia tivesse falta de espaços e dinheiro de sobra! Note-se que logo, uns metros acima, tem a CML a Casa Fernando Pessoa para lá das instalações da Junta de Freguesia. Mas não acaba aqui a operação de salvação do Cinema Europa: no Orçamento Participativo de 2010 foram afectados 690 mil euros à transformação desse piso térreo numa biblioteca e à aquisição de livros.

Claro que estes dois milhões de euros não esgotam o nosso resgate do Cinema Europa. Agora, doravante a para o futuro teremos de pagar aos funcionários do equipamento cultural e naturalmente assegurar as verbas para fazer nascer a cultura no equipamento cultural. Mas, claro, salvámos o Cinema Europa, sendo que o único filme que por ali se pode ver é a tradicional fita do contribuinte a fazer figura de parvo, da administração pública a inchar e do promotor imobiliário a valorizar o seu prediozinho, pois está bem de ver que é muito melhor ter no piso térreo do edifício um equipamento cultural, mesmo que tão vazio quanto os seus congéneres espalhados pelo país, do que um supermercado. Mas salvámos o Cinema Europa, apesar de não haver cinema algum. Quanto à biblioteca creio que o seu destino não deve ser diverso do dos inúteis pavilhões multiculturais que abundam pelo país: uma gélida mediocridade.

Mas o ímpeto da CML para salvar cinemas não se esgotou de modo algum em Campo de Ourique e seu termo: em 1997, a CML adquiriu o Cinema Roma onde, exteriorizando o seu desejo de brincar à Sétima Arte, a autarquia se instalou a ela mesma. Ou mais propriamente instalou a Assembleia Municipal. Mas graças aos céus salvámos o Cinema Roma! É contudo óbvio que em matéria de salvações municipais nada concorre com a salvação do Cinema São Jorge. O São Jorge, estarão lembrados, esteve para ser adquirido por uma daquelas igrejas com pregadores e povo à porta. A pátria tremeu de horror e espanto. Podia lá ser?! Vai daí a CML que viu naquela magnífica sala uma espécie de campo santo que de modo algum podia ser profanado pelos incultos, comprou o Cinema São Jorge. E assim o São Jorge se tornou na versão contemporânea da Bela Adormecida ou das salas de cinema da Albânia nos tempos de Enver Hodja: à excepção dos festivais de cinema, apoiados pela mesma CML, o São Jorge vegeta. Cinematograficamente falando. Porque em matéria orçamental o São Jorge está vivo e bem vivo: aconselho a que se digite no portal dos ajustes directos a expressão Cinema São Jorge e logo se constatará que salvar o cinema São Jorge é uma tarefa bem mais complicada que vencer dragões, especialidade do santo que dá nome ao cinema. Creio mesmo que é uma empreitada eterna.

Face ao desastre destes salvamentos quando chegou a hora de salvar os espaços míticos dos cinemas Quarteto e Londres já os lisboetas estavam cansados de salvar tanto cinema. E nem os argumentos de que na avenida de Roma não se podia instalar uma loja chinesa ou que toda uma geração começara a namorar no Quarteto comoveram os alfacinhas que nessa fase já viviam eles mesmo sob resgate. E foi nesse preciso momento, o do resgate, que os antigos salvadores de cinemas despertaram para o resgate de um edifício/serviço público: a Maternidade Alfredo da Costa. Pela MAC deram-se beijinhos, abracinhos e saltinhos. Puseram-se florinhas de papel nas grades da maternidade e creio que até aquelas rosetas de croché com que agora se adornam as árvores não percebo com que finalidade. Só não se fez a única coisa que podia manter a maternidade aberta: bebés. Creio até que para desbloquear a situação se podia fazer uma sinergia entre o Cinema São Jorge e a MAC, passando no primeiro filmes inspiradores das situações que levam ao nascimento de bebés nove meses depois. Mas seja como for salvámos a MAC, mesmo que não tenhamos partos em número que justifique o seu funcionamento.

Agora temos de salvar a Discoteca Jamaica. Quem quiser salvar a Discoteca Jamaica que pague a sua salvação. Que entregue ao senhorio o dinheiro da renda actualizada. Que cubra as despesas das obras que ali foram feitas pelo inquilino. Agora mais salvação de espaços míticos para mais privados à conta dos munícipes é que não. Trate a CML que tão preocupada anda com a Discoteca Jamaica de salvar o património que tem a cair e já faz obra!