Lembram-se das SCUT? Eram as autoestradas “sem custo para o utilizador”. Não tinham portagens, não se pagava nada para lá circular. Mas como não há milagres, embora muitos governantes gostem de fazer passes de mágica, a factura era paga por alguém. Neste caso, pelo contribuinte. Funcionava assim, através das famosas parcerias público-privadas: o Governo lançava o concurso, os privados construíam e suportavam esse investimento e depois ficavam com a concessão da estrada a troca de umas centenas ou milhares de milhões de euros anuais durante esse período de concessão que durava cerca de 30 anos. Passassem por ali dois mil ou apenas dois carros por hora os privados tinham a sua confortável rentabilidade assegurada. Sem risco, porque o Estado cobria a falta de procura. E ainda pagava a manutenção.
Foi assim que enchemos o país de “AA qualquer coisa”, depois da fantástica descoberta do modelo no governo de António Guterres.
Eram, portanto, sem custos para o utilizador mas com muitos custos para o contribuinte. Tantos que quando as contas do Estado se tornaram insuportáveis de sustentar não houve outro remédio senão instalar pórticos de portagem, passando os automobilistas a pagar o que até então era um encargo de todos os contribuintes, tivessem carro ou não, circulassem por ali ou não.
Não aprendemos grande coisa com isso. O “espírito SCUT” está vivo e, aqui e ali, reaparece travestido de várias formas.
Dizem-nos que os manuais escolares vão passar a ser gratuitos para todos os alunos do 1º ano já no arranque do próximo ano lectivo.
Que os livros sejam suportados pela Acção Social Escolar para todos os que, comprovadamente, não os podem comprar é inquestionável. Ninguém pode deixar de ter as condições mínimas de estudo por questões económicas e se o Estado Social serve para alguma coisa esta está no topo das prioridades. Isso já acontece, colocando manuais escolares à disposição dos beneficiários.
Também é inquestionável que uma das prioridades é acabar com a renda que as editoras recebem à custa das famílias, obrigando-as a comprar manuais e livros de actividades novos em cada ano lectivo, num negócio que conta com a cumplicidade de quem decide e aprova os manuais para cada ano – sobre isto é obrigatório ler este texto de Antóno Araújo.
Mas não é isso que vai ser feito. Os manuais passam a ser “gratuitos” para quem os utiliza mas são pagos pelo Estado, portanto por todos os contribuintes, às editoras, que mantêm o seu negócio. Como a medida vai ser universal, as famílias mais abastadas serão tão beneficiadas como as mais carenciadas. É o mesmo truque de magia das SCUT. Neste caso a factura não é paga na livraria mas sim na repartição de finanças.
Outro exemplo. Há semanas, no meio da “guerra” comercial das ligações aéreas Lisboa-Porto – sobretudo depois dos preços de saldo que a Ryanair e a Easyjet começaram a cobrar nessa rota – a CP decidiu entrar na liça. Anunciou descontos de 65% nos bilhetes comprados com uma semana de antecedência que, no caso da classe turística do Alfa, passam de 30,30 euros para 11 euros. É óptimo que a CP tenha uma forte dinâmica comercial, que melhore os seus serviços e tente cativar passageiros. Mas há aqui um pequeno detalhe: a CP é uma empresa pública, historicamente deficiária e com uma dívida monstruosa. Adivinhem, portanto, quem paga as perdas de receita que não sejam compensadas com corte equivalente de custos: se respondeu “o contribuinte”, acertou.
Em 2014 (as contas do ano passado ainda não estão disponíveis) a CP teve prejuízos de 161 milhões de euros, fechou com uma dívida acumulada de 4,5 mil milhões de euros e manteve-se tecnicamente falida, com capitais próprios negativos de 3,6 mil milhões de euros — isto quer dizer, grosso modo, que se a empresa tivesse sido fechada nessa altura a factura que sobrava para os contribuintes era essa, de 3,6 mil milhões de euros.
Ou seja, os descontos de que os passageiros beneficiam na CP não serão pagos por mais ninguém senão os contribuintes.
Eu, que não hesito em preferir o comboio sempre que vou ao Porto — é tão rápido e mais barato do que o automóvel, é cómodo, permite que se vá a trabalhar durante a viagem com a rede wifi disponível e deixa-nos nos centros das cidades — agradeço a amabilidade e o desconto, que aproveitarei com prazer. Duvido é que o meu vizinho da frente, que nunca precisa de viajar no Alfa, sinta o mesmo prazer por pagar uma parte substancial do meu bilhete de comboio quando desconta o IRS e paga o IVA no supermercado para suportar as promoções de uma empresa pública cronicamente deficitária.
Nestas coisas, há um princípio de que nunca devemos abdicar: nunca acreditar quando um governante ou um decisor do Estado diz que alguma coisa vai ser gratuita ou mais barata. O que ele está a querer dizer é que a factura vai ser camuflada e paga por outros. Os contribuintes, obviamente.
Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com