O ano de 2014 devia ser o ano do fim do programa de assistência. Depois das noites de 22 e 24 de Novembro, é improvável: este é, desde já, o ano da detenção e prisão preventiva de José Sócrates. Para uma parte do país, depois de tantos “casos” com a pegada do ex-primeiro ministro, foi o desenlace de uma espécie de “apanha-me se puderes” que já parecia não ter fim. Houve quem sentisse o “abalo do regime”. E houve logo quem falasse de “exagero”. Vamos a ver: está o regime – estas instituições, estas regras, e este pessoal político — em causa?

A confirmarem-se as suspeitas, os portugueses serão confrontados com a probabilidade de, durante vários anos, terem eleito e sido governados por alguém que abusou dos cargos e da confiança pública para enriquecer pessoalmente. Sim, os regimes são mais do que as pessoas. Mas são também as pessoas. Repito: asseveradas as alegações, como conseguirão os cidadãos confiar outra vez num regime cuja classe política não parece ter meios ou disposição para escrutinar, filtrar e excluir os menos idóneos? A distância em relação aos actuais políticos tornar-se-ia, para muitos cidadãos, uma questão de higiene e de segurança. Que perspectivas não ficariam assim abertas para outros protagonistas e outras ideias?

A degradação do regime pode ainda ser acelerada pela própria oligarquia política: basta que decida processar este caso judiciário nos termos labregos do tribalismo. Seria assim: de um lado, os correligionários do ex-primeiro ministro, decididos a interpretar uma eventual acusação e condenação como prova de que a justiça o persegue; do outro lado, os seus adversários, preparados para deplorar qualquer arquivamento ou absolvição como a prova de que a justiça o protegeu. Se a oligarquia se dividir desta maneira, é certo que uma parte dela passará a ter razões para declarar o regime viciado a favor da outra parte. Alguns oligarcas serão mesmo tentados a candidatar-se a fundadores de outra situação. É assim que geralmente acabam os regimes.

Não é impossível que aconteça. Mas, neste momento, parece ser difícil de imaginar, a não ser como catástrofe total. Porquê? Porque a oligarquia do actual regime nos ensinou, ao longo dos anos, que o fim deste regime tinha de significar uma nova ditadura, ou até o “regresso do fascismo”. Não tem de ser nada disso. Para começar, convém distinguir entre “regime” no sentido dos grandes princípios e mecanismos da democracia constitucional e da integração europeia, e “regime” no sentido de um certo pessoal político e da sua maneira de se relacionar entre si e com o país. Ora, o pessoal e o sistema político podem mudar, sem que isso comprometa necessariamente a democracia ou a integração europeia. Aconteceu em França em 1958, com a passagem da IV para a V República: a França adquiriu uma nova constituição e um novo sistema político, desenvolveu novos partidos, etc., mas continuou a ser uma democracia e parte da então Comunidade Económica Europeia.

O “fim do regime” em Portugal não tem de equivaler, portanto, à passagem para uma qualquer ditadura luso-tropical. A democracia em Portugal foi até agora, para o bem e para o mal, estes políticos, estes partidos, este sistema eleitoral, e este equilíbrio dos órgãos de soberania. Mal seria se tivesse de ser assim para todo o sempre. É possível falar de um novo “regime” no sentido de uma nova fase da democracia, da mesma maneira que os franceses falam do “regime da V República”.

Mas o fim de um regime pressupõe forças para construir outro. Haverá em Portugal essas forças – outras pessoas, outras disponibilidades, outros meios — para refundar a democracia, como o general De Gaulle fez em 1958 em França, perante o descalabro militar e financeiro da IV República? Não sabemos. Existe, portanto, uma perspectiva sinistra: é que o país, perante o espectáculo de tantos “casos” político-financeiros, passe a desprezar esta oligarquia e estas instituições, mas sem nada para lhes substituir, sem alternativa, porque nunca serão alternativa meia dúzia de populistas de televisão e uns quantos saudosos do Gulag e do muro de Berlim. Continuaríamos, assim, a escolher governantes no menu actual, mas cada vez mais compenetrados de que iríamos ser sempre mal servidos. Neste caso, não é o regime que está em risco. É o país, destinado ao que só pode ser um arrastado exercício de cinismo e decadência. Há vida para além de Sócrates?

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