Sábado de manhã. Sigo de automóvel para uma conferência em que vou participar e ouço, quase distraído, um daqueles programas de rádio onde dois animadores conversam e passam música. De repente espanto-me. Um deles começa a contar como, recentemente, alguém entrara nos seus registos fiscais, ficara a par dos seus rendimentos mensais e, porventura por não gostar das suas opiniões, não achara melhor forma de agir do que ir para a sua página do Facebook comentar as flutuações no seu rendimento. Fazendo-o com o detalhe de distinguir alterações que ocorriam mês a mês.

O meu espanto vinha da sinceridade: alguém que, de viva voz, contava como a “curiosidade” de um qualquer funcionário da administração fiscal permitira uma intrusão que, depois, se transformava numa quase ameaça escarrapachada numa página do Facebook.

Mas o meu espanto não se ficou por aqui. O seu companheiro de programa, em vez de se assustar com esta espécie de Estado “big brother” onde qualquer um de nós pode ser vítima da falta de escrúpulos de um servidor público, tratou logo de levar a coisa para a política e para os “quatro da lista VIP”, uma enumeração cuja única fonte é, até ao momento, o dirigente sindical da classe de funcionários onde estas intrusões parecem ocorrer com assustadora frequência.

Cheguei entretanto à conferência para onde ia, uma organização de jovens católicos, e o moderador do meu painel, que reunia pessoas ligadas a empresas criadas recentemente, surpreendeu-me com a primeira pergunta. Ele queria saber se eu, jornalista, sabia explicar o contraste entre o país que ele conhecia, onde muita gente andava a tentar dar a volta à vida e muitas empresas estavam e reinventar-se para voltarem a crescer, e o país que ele via todos os dias retratado na generalidade da comunicação social, um país sempre a anunciar a catástrofe iminente ou a lamentar mais uma desgraça.

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Respondi-lhe como pude, até porque ele também queria saber por que razão, estando eu há tantos anos numa empresa como o Público, resolvera ajudar a criar uma nova, o Observador, com todos os riscos associados. A resposta que lhe dei importa aqui pouco – importa o que fui ouvindo ao longo daquela manhã e as conversas que tive depois com alguns dos que lá estavam. E importa porque, de alguma forma, esse debate alterou o estado de espírito algo sombrio com que entrara naquela enorme tenda junto do CCB onde decorria esse evento, o Meeting de Lisboa.

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Nos últimos dias dera alguma atenção à morte de uma figura que há mais de 20 anos me chamara a atenção, desde a primeira vez que viajara para a Ásia: Lee Kuan Yew, o pai fundador da Singapura moderna. Quem segue a minha newsletter diária, o Macroscópio, sabe que já me referi a ele várias vezes e estava com intenção de escrever uma crónica sobre as razões para naquele país com metade da população de Portugal se ter produzido o milagre económico que nós falhámos.

O meu ponto de partida era simples: em 1960 o PIB per capita do paupérrimo Portugal de Salazar era quase igual ao de Singapura, uma antiga colónia britânica que só alcançara a independência um ano antes, em 1959. Em dólares da época, o nosso PIB per capita estava nos 357 USD, o de Singapura nos 395 USD (dados do Banco Mundial). Ou seja, uma diferença de pouco mais de 10%. Em 2013, a nossa riqueza a dividir por cada habitante quedava-se nos 20.995 USD, a de Singapura saltara para o topo da lista mundial, estando então em 55.182 USD (estimativas do FMI). Interessava-me discutir o porquês desta tão grande e tão rápida divergência e os meus argumentos andariam em torno de diferenças nas instituições e na cultura que as suporta.

Deixo contudo essa reflexão para mais tarde, pois foi a pensar na nossa muito peculiar maneira de sermos portugueses – nos nossos hábitos e nos nossos valores dominantes enquanto sociedade –, que saí a pensar daquele encontro. E é sobre isso mesmo que vos deixarei agora uma ou duas reflexões.

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Um dos livros mais luminosos do nosso século XX é a síntese do país que então éramos elaborada por Orlando Ribeiro, um geógrafo, em “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico”. Obra publicada em 1945, teria enorme influência em muitos estudos posteriores, da História à Arquitectura, passando pela Biologia ou pela Antropologia, mas foi caindo no quase esquecimento conforme o país foi mudando e à dualidade matricial descrita por Orlando Ribeiro se foram sobrepondo outras dualidades: país rural e país urbano, país litoral e país interior, até país de esquerda e país de direita.

É possível que uma das últimas grandes manifestações dessa dualidade matricial tenha sido a que emergiu na grande crise do PREC, com a divisão norte/sul a passar mais ou menos pelo paralelo de Rio Maior, mas depois disso o país misturou-se muito, tornou-se ainda mais urbano, as divisões políticas esbateram-se e começámos a vermo-nos como uma realidade quase homogénea. Uma realidade que, do pequeno crime ao recorrente escândalo, passava diariamente pelos nossos telejornais com a mesma força de uniformização cultural de uma telenovela brasileira (primeiro) ou de uns Morangos com Açúcar (depois).

Esta leitura simplista de que tudo o que se passa, passa pelas televisões, e que nestas é devidamente explicado pelos comentadores e pelos especialistas, conduziram-nos a algumas das perplexidades desta crise. Porque é que a depressão foi maior do que se imaginava, sobretudo em 2012, ultrapassando todas as expectativas? E porque é que a recuperação, em especial a recuperação do emprego, está a ser mais rápida do que previram mesmo os mais desvairados optimistas? Como explicar que tendo a crise atingido as proporções que atingiu, não tivessem ocorrido as revoltas que dezenas de comentadores disseram que explodiram com níveis muito menores de sofrimento? E como é possível que, depois de tudo isto, os partidos no poder não apareçam reduzidos a pó, pelo menos nas sondagens?

Há algumas explicações para estas surpresas, e por certo que algumas delas andarão pela forma vergonhosa como falharam boa parte das nossas elites, quer das que estavam (e ainda estão) habituadas à protecção do Estado, quer das que têm mais acesso ao espaço mediático. Mas o que se me tornou mais evidente no debate em que participei sábado de manhã é que é necessário ir mais fundo, tentar perceber melhor as opções que cada português foi tomando ao longo destes anos para compreendermos melhor a resultante – até porque a economia, essa ciência que invadiu o nosso dia-a-dia, não é mais do que uma tentativa de compreensão do agregado de milhões de decisões individuais.

Aqui chego, ou regresso, à ideia de sermos muitas vezes “dois países”, já não os que Orlando Ribeiro descreveu, se bem que neles permaneçam alguns dos seus traços. Para ir directo ao assunto de uma forma porventura brutal e simplista, tivemos nestes anos um país que se queixou e foi muito vocal, e um país que tratou de fazer pela vida, de “se virar” o melhor que podia, um país que percebeu muito depressa que tinha de alterar os seus hábitos de consumo (e por isso a recessão foi maior do que esperava) mas, ao mesmo tempo, um país que procurou desenrascar-se e improvisar, que saiu do seu conforto e assumiu mais riscos (e por isso assistimos a coisas tão surpreendentes como a radical transformação do centro de cidades como Lisboa ou o Porto ou descobrimos uma insuspeita capacidade para exportar e ir, de novo, à conquista do mundo).

Haverá – há de certeza – um lado redutor neste retrato e nesta dicotomia, que vale sobretudo como uma possível chave de leitura. Mas, ao mesmo tempo, há algo que não é de forma alguma uma caricatura, e essa é “a realidade a que temos direito” – ou seja, o país dos telejornais, das greves do Metro e do omnipresente Mário Nogueira, do caos numa urgência transformado no caos de todo o Serviço Nacional de Saúde, o país das comissões de utentes saídas nunca se sabe de onde e dos bastonários na pele de “passionárias”, o país que fala da “lista VIP” mas não se incomoda com o Estado intrusivo e os seus funcionários abusadores (mas sindicalizados), o país dos talibãs das redes sociais e da guarda pretoriana do politicamente correcto.

Quem atenta apenas neste país, e só a este país quer agradar, perde duplamente. Perde, porque nunca entenderá o porquê de a realidade ter contrariado quase todas as suas previsões. E perde porque quem anda como uma catavento em busca de uma sempre evanescente popularidade, acaba a andar de cabeça baixa, sempre com medo de desagradar às multidões, para usar uma imagem feliz de Francisco Assis.

A multidão não tem sempre razão. E houve, e há, um outro país onde, procurando vencer cada dia a seguir ao dia que passou, acaba, acabará, por dar a volta por cima. Esse país só espera que o Estado o atrapalhe menos e não o prejudique para proteger os que estão, sejam eles os taxistas de Lisboa ou certos banqueiros de Cascais.

PS. Já depois de escrito e editado este texto, soube da morte de Armando Sevinate Pinto. Haverá poucas pessoas em Portugal que valha sempre a pena ouvir e ler sobre o que é, de onde vem e para onde vai a nossa agricultura, e Sevinate Pinto era uma delas. Fazia-o, por regra, contrariando ideias feitas e de forma construtiva e muito informada. Vai fazer-nos falta.