Quando me perguntam se existe em Portugal incompreensão cultural, estigmas ou ignorância relativamente ao “outro” lembro-me sempre da minha conversa com o Bruno Gonçalves, ex-dirigente de associações contra o racismo e minorias étnicas e atual delegado nacional e do conselho da Europa do programa ROMED. “Graças ao cigano, já muito português comeu sopa. Muitos pais dizem às crianças – come a sopa senão eu chamo o cigano e ele leva-te!” A frase pode dar para rir, mas o tema é sério.

Conseguir criar uma sociedade que integre, promova, potencie e valorize a diversidade cultural no seu pleno é um desafio, mas não é só português. É um desafio que não respeita fronteiras, transversal a várias cidades do mundo. Às vezes a ignorância, incompreensão cultural ou estigmas aparecem enquanto se come a sopa e sem se saber bem porquê.

Também é verdade que o momento em que vivemos reforça a importância e a necessidade de soluções que promovam um diálogo cultural. O Família do Lado é um exemplo de solução louvável. É um dia no ano, mas que mostra de forma clara o potencial de projetos que ligam pessoas locais, migrantes e refugiados a viver na mesma cidade. O projeto é promovido em Portugal desde 2012 pelo Alto Comissariado para as Migrações. O conceito é simples: uma família aceita acolher em sua casa uma outra que não conheça (a família do lado) constituindo-se pares de famílias, uma migrante e outra autóctone (ou vice versa), para a realização de um almoço-convívio, típico da sua cultura, como forma de acolhimento do “outro”.

O almoço é apenas um pretexto que “serve para falar do desafio que é para quem chega a um novo país, percebê-lo, integrá-lo e fazer parte dele. Nos últimos anos, 55% das pessoas que participam nestes almoços continuaram a relacionar-se a partir daí. Este ano são mais de 280 famílias a participar” referiu Pedro Calado, Alto Comissário para as Migrações.

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Hoje cozinhei para a Tatyana da Bielorrússia e o namorado Edu que é do Brasil. Correu tudo muito bem fora o facto do almoço ter sido bacalhau espiritual e o Edu não conseguir comer peixe. Nas restrições alimentares a Tatyana tinha escrito em inglês “sea food”, que para mim significava marisco e para ela “comida do mar”. O que faz sentido, mas que mostra que até numa língua em que supostamente conseguimos comunicar há desafios de comunicação. A Tatyana está em Portugal há três anos, já viveu em Leiria e foi lá que participou pela primeira vez no Família do Lado. Contou-nos que foi recebida por uma família portuguesa, que acabou por visitar várias vezes depois da experiência.

Para a Tatyana, a experiência permitiu criar uma relação com uma família local que lhe podia dar conselhos sobre onde comprar comida, onde aprender português, o que visitar, ajudar em desafios burocráticos e tantas outras coisas. Esta rede de suporte informal é chave para que o processo de integração na nova cidade seja mais fácil. Esta história de sucesso da Tatyana e da família portuguesa leiriense representa aqui outras tantas histórias de sucesso do Família do Lado. Mas, por outro lado, faz-nos pensar em todas aquelas que poderiam acontecer se houvesse mais projetos e iniciativas deste tipo.

Este ano, os Global Shapers ajudaram a implementar o evento em Lisboa e a testar a tecnologia World Meal, que foi desenvolvida durante a Hack4Good (organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian) e que se espera que seja lançada em 2018, com o Alto Comissariado para as Migrações para exactamente isso: potenciar a oportunidade de replicar estes encontros e permitir que este tipo de encontros possa acontecer a qualquer momento do ano entre as famílias que bem entenderem participar.

Projetos como o Família do Lado e o SPEAK promovem a aproximação, diálogo e conhecimento mútuo de pessoas de origens e culturas diferentes, valorizam a diferença e combatem preconceitos. Veem a integração enquanto um processo bidirecional, recíproco, que implica mudanças nas pessoas migrantes mas também nos cidadãos portugueses e na cidade de acolhimento. Tentam resolver problemas sociais mas a solução está em cada um de nós. Qualquer um pode participar independentemente da cor das unhas, roupa, país de origem ou prato preferido. Cada um leva o seu mundo, experiência e conhecimento que partilha com o “outro” enquanto quebra barreiras, estereótipos, cria relações de amizade. E que depois leva esta aceitação e valorização pela diferença para casa e, de uma forma especial, a vai espalhando pelo mundo. Até enquanto dá sopa e a saber bem porquê.

Hugo Menino Aguiar é co-fundador do www.speak.social, co-fundador e presidente da Associação Fazer Avançar e mentor de projetos sociais. Foi reconhecido pelo INSEAD como um dos jovens empreendedores sociais com mais potencial em Portugal e pela UNAOC como um dos mais promissores na região EURO-MED. Formou-se em engenharia informática na Universidade Nova de Lisboa onde foi professor assistente e trabalhou na OutSystems e na Google.

O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, partilharão com os leitores a visão para o futuro do país, com base nas respetivas áreas de especialidade. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.