É certo que em ano de eleições tudo serve de pedra para atirar aos adversários políticos de ocasião (com cuidado, porque podem ser futuros aliados – hoje em dia mais do que nunca). É certo que a polémica em torno da lista VIP das finanças é uma pedra potencialmente poderosa, susceptível de provocar danos consideráveis. É certo que parece haver um cuidado com este assunto superior ao habitual, com partidos do poder e da oposição cautelosos na sua abordagem, como perante um chão semeado de minas destrutivas que podem atingir uns e outros indiscriminadamente. É certo que o governo nega ter feito qualquer lista e que o sindicato dos trabalhadores dos impostos diz exactamente o oposto.
Alguém mente?
Ouvido esta manhã: há trabalhadores dos impostos com processos abertos, por consultarem contribuintes que farão parte da tal presumida lista, no cumprimento do seu trabalho normal de investigação. Disse-o Paulo Ralha, presidente do sindicato dos trabalhadores do fisco, e disse mais: que em reuniões de formação houve referências expressas a essa lista. E disseram-no, ao vivo mas não a cores (pois foi num programa de rádio), inspectores tributários estagiários que participaram numa dessas acções com mais de 300 colegas, revelando os termos em que a questão foi colocada (e o nome do formador que o disse, nome esse confirmado já por outros): haverá uma “lista” ou “bolsa” com “números de contribuintes” os quais, quando acedidos pelos trabalhadores tributários “faz disparar um alarme” que leva a “processos disciplinares”. Haverá? Fará? Levará? A dúvida, num caso destes, é obviamente insuportável. Mas todos reportam a existência de muitos processos disciplinares.
Suponhamos que se prova haver uma lista. O que está em causa é obviamente a igualdade dos cidadãos perante a lei. Sobre isso não parece haver dúvidas – não pode haver dúvidas -, pois é um direito fundamental assegurado pela Constituição e pelos princípios mais básicos do funcionamento de uma sociedade democrática.
Pode discutir-se se determinadas pessoas têm direito a ver a sua vida, financeira e tributária, neste caso, mais protegida do que outras? Pessoas como políticos, celebridades, empresários, pela sua natureza, devem ser protegidas de forma especial, com regras de acesso aos respectivos dossiês distintas das dos restantes cidadãos? Qual poderia ser o argumento ou argumentos nesse sentido? Simplesmente que a divulgação dos dados pessoais de homens e mulheres de poder e influência, nomeadamente os relativos à vida financeira, bens possuído ou património, diminui a sua capacidade de decidir e agir, tornando-os vulneráveis à pressão e dando armas aos seus adversários; estão mais sujeitos do que o comum dos mortais (como se todos os mortais não fossem comuns) à curiosidade pública e são por isso mais vulneráveis à divulgação da sua vida; e até o simples risco, prosseguiria esta linha de argumentação, colocaria essa pressão e teria consequências inconvenientes.
Mas esse tipo de argumentos parte mais uma vez de uma premissa errada: a de que o direito ao sigilo – a não ver revelados aspectos da respectiva vida privada – é maior para uns do que para outros; na verdade, é igual para toda a gente. Tanto eu como o primeiro-ministro (seja ele qual for, já agora), o meu vizinho do 5º esquerdo como o homem mais rico de Portugal, temos direito a não ver revelados os nossos dados pessoais. Um direito inalienável, cuja violação constitui crime. Porque é que seria necessária uma protecção especial a alguns contribuintes, colocando-os em simultâneo a coberto (ou em condições especiais de acesso) da normal actividade inspectiva – quanto à regularidade do cumprimento das suas obrigações – por parte dos serviços?
Grave, muito mais grave, claro, é que possa haver inspectores fiscais sujeitos a processos disciplinares por terem acedido a números de contribuintes constantes da suposta lista (reparem nos condicionais e no adjectivo, todo o cuidado é pouco ao abordar este assunto).
E de repente está criado um novo facto político. Sem necessidade? Sem nenhuma necessidade. Se no momento dos primeiros indícios desta situação, mesmo quando as notícias foram conhecidas ou até mal vieram a público – sendo calúnias, extrapolação de situações normais decorrentes das regras impostas aos trabalhadores da Autoridade Tributária (AT) ou até puras invenções –, tivesse sido de imediato anunciada uma investigação cabal e profunda, quiçá com o recurso a auditores externos já sugerido por Marques Mendes, ou pelo próprio PSD, talvez não chegasse a existir facto político.
Como é que o governo, ainda hoje, reage? Nega ter dado instruções para a elaboração de listas, recordando que a própria AT já disse o mesmo e que os processos abertos a trabalhadores (mais de 140, segundo dizem os seus representantes) são para averiguação de quebras de sigilo fiscal relativas a notícias com informações sobre contribuintes. O que até faz sentido – é meritório -, e resolveria provavelmente a questão, não fossem as notícias sobre a tal lista (ou nomes “protegidos”). Sentido não faz contudo, nesta fase e perante o acumular de informações e declarações sobre essa lista, que o governo anuncie peremptoriamente que não fará qualquer inquérito.
Não há lista? É uma invenção de um conjunto alargado de pessoas, ao serviço ou não de interesses partidários ou eleitorais? É uma conspiração? É excesso de zelo, uma interpretação extensiva da vontade dos responsáveis? Se for tudo isso ou qualquer uma dessas coisas, o governo tem todo o interesse em que se saiba e não basta gritar que é isso: num ano eleitoral, com tanta gente a falar de tanta coisa, a do governo é apenas mais uma voz e não necessariamente a que muitos portugueses estarão dispostos a ouvir com mais atenção. Não é demagogia, é simplesmente um facto da vida.
Tenho escrito e continuarei a escrever sobre o sistema político, a credibilidade e responsabilidade dos nossos representantes e a confiança entre eleitores e eleitos. Um episódio como este, é bom de ver, não contribui em nada para essa confiança. É mais um tiro em qualquer parte vulnerável da anatomia deste tão martirizado sistema democrático: que ainda resista é um extraordinário sinal da sua importância e significado para todos e cada um de nós.
* Professor da universidade Católica, Instituto de Estudos Políticos