Há muito que percebemos que, no que respeita ao drama dos incêndios deste Verão, o Governo tinha perdido toda e qualquer vergonha. Depois daquilo a que assistimos este fim de semana não restam dúvidas que também perdeu o norte e o mínimo de lucidez. As palavras dos governantes falam por si, e as mais eloquentes até são as de António Costa. Vale a pena passá-las em revista, começando pela pérola desta madrugada:

“Minha senhora, não me faça rir a esta hora”.

O primeiro-ministro respondia assim a uma pergunta mais incómoda de uma jornalista da SIC. A seguir não se coibiu de criticar a SIC por esta não ter dado as notícias que ele gostaria sobre a reforma da floresta.

No pódio do dislate o segundo lugar vai para a ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa:

“Para mim seria mais fácil, pessoalmente, ir-me embora e ter as férias que não tive, mas agora não é altura de demissões”.

Como portugueses não sabemos se rir, se chorar. Ver uma ministra a lamentar não ter tido férias no dia em que o país voltou a arder, o sistema que dirige voltou a falhar e morreram mais de três dezenas de portugueses é inumano. Não mostra apenas falta de jeito ou a ausência de um conselheiro de imprensa, revela o que vai na alma da governanta. Afinal Costa pôde ir de férias para as ilhas Baleares quando o país estava a arder (e o caso de Tancos acabara de ser conhecido) e ela, coitada, ficou por cá. Uma injustiça, está visto. E um problema para todos nós, pois enquanto por cá esteve andou a atrapalhar sempre que vestia um colete e andava de posto de comando em posto de comando.

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O terceiro lugar do pódio fica assim para o secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, apesar de este se ter esforçado toda a semana para acrescentar novos disparates aos disparates que já tinha dito. Eis o mais recente:

“Têm de ser as próprias comunidades a ser proactivas e não ficarmos todos à espera que apareçam os nossos bombeiros e aviões para nos resolver os problemas. Temos de nos autoproteger, isso é fundamental”.

É de ficar de queixada caída. É de perguntar ao senhor se por acaso não viu nas televisões as populações aflitas a fazerem o que podiam mesmo com os bombeiros por longe. É sobretudo de o questionar sobre um conselho que pode atirar com gente impreparada, muitas vezes idosa e fraca, para situações de alto risco apenas porque o Estado está de novo a falhar.

Mas se estas pérolas ilustram bem o desnorte reinante, é importante não ficarmos só por aqui. É importante vermos tudo o que disse o primeiro-ministro na madrugada desta segunda-feira para perceber as falácias, as meias-verdades e toda a mistificação da sua argumentação.

Eis alguns exemplos:

“Quando há dez anos foi feita a reforma, foi dito que estávamos a comprar tempo para se fazer a reforma da floresta, e ela não foi feita”.

É a nova ladainha de Costa, a frase que decorou e repete sempre que, com chamas por trás, lhe põem um microfone pela frente. Mas é uma mistificação. Primeiro, porque, como agora nos disse, preto no branco, a Comissão Técnica Independente que investigou o fogo de Pedrógão Grande, o sistema de Protecção Civil montado por Costa quando era ministro não é o adequado. Não serve. Nem está servido pelos mais competentes, antes por demasiada gente com o cartão do partido. Depois, porque a opção feita há dez anos foi feita contra o conselho dos técnicos e os relatórios científicos. E porque o reforço da Protecção Civil se realizou à custa do desinvestimento na floresta. Para além do mais, o PS foi governo em seis dos últimos dez anos, e em 13 dos últimos 20 anos, sendo que Costa esteve quase sempre nesses governos. Se Costa quer queixar-se deve então queixar-se dele próprio e do seu partido.

“Quando se tem 523 incêndios não se tem bombeiros para tudo. Este foi o 22.º dia com maior número de ocorrências desde o princípio do século”.

Esta declaração é muito reveladora. Toda a estratégia de protecção contra incêndios florestais desenhada por Costa quando foi ministro assentou na chamada “eficácia do ataque inicial”. Portugal libertar-se-ia assim do flagelo dos grandes incêndios. O pior, como se viu este ano, é quando esse ataque inicial falha. Nessa altura todo o sistema vem abaixo. Foi aquilo a que assistimos vezes sem fim todo este Verão. Pior: depois de Pedrógão, Costa gabou-se de que o sistema “apanhava” na fase inicial nove em cada dez fogos; ontem já se dava por contente por terem sido controlados quatro em cada cinco. Já nem se deve lembrar do que andou a dizer.

“Os meios foram esticados até ao limite. Estamos numa fase do ano em que é mais difícil mobilizar pessoas. Por isso é que foi agora accionada a calamidade pública.”

Depois da casa queimada, trancas à porta. Uma das conclusões do relatório da Comissão Técnica Independente é que, face ao extremo climático que se previa para Junho, a Protecção Civil devia ter antecipado a fase em que mobiliza mais meios. Mas, mesmo depois dessa lição, e antes de um fim-de-semana que se sabia ir ser, de novo, de extremo climático, nada ou quase nada foi feito para ter o sistema pronto. Pior: o estado de calamidade pública, que só foi decretado depois de o pior ter acontecido, podia ter sido decretado logo na sexta-feira. Nem seria inédito, pois aconteceu uma vez no passado mês de Agosto, num fim-de-semana que também se previa complicado. Mas nada foi feito. Estavam a dormir ou a olhar para outro lado e agora só não querem que lhes peçam responsabilidades.

“Essa obsessão de que falhou alguma coisa não faz sentido. A culpa é o desordenamento da floresta, que está mal estruturada e é pouco resiliente, um problema que se acumula ao longo de décadas.”

Ora aqui está. Com António Costa nunca há nada que falha, nunca há responsabilidades a apurar, nunca há ilações políticas a tirar. A culpa é sempre da natureza, dos homens, do “downburst” ou do furacão Ophelia. E o milagre chegará quando tivermos toda a nossa floresta impecavelmente ordenada. O azar dele é que este fim-de-semana arderam também matas nacionais impecavelmente ordenadas e tratadas – de resto, as únicas matas nacionais bem tratadas, as do Pinhal de Leiria. O que mostra como a tal ladainha da reforma florestal é isso mesmo: uma ladainha.

“O país tem de ter consciência que a situação que estamos a viver vai seguramente prolongar-se para os próximos anos. O pacote florestal vai produzir efeito ao longo de uma década. Se julgam que há alguma solução mágica estão completamente enganados”.

É verdade, não há nenhuma solução mágica. O que há, para já, é uma antecipação de danos futuros: se para o ano o país voltar a arder de forma catastrófica, António Costa poderá sempre dizer que já nos tinha avisado. E o que também há é uma grande irresponsabilidade. Quando o “pacote florestal” foi aprovado não foram poucas as vozes de técnicos, especialistas e cientistas a criticá-lo. A considerá-lo ou insuficiente, ou mesmo errado. Ninguém lhes deu ouvidos, as atenções estiveram todas numa discussão espúria sobre eucaliptos com o Bloco de Esquerda. Agora basta ler o relatório da Comissão Técnica Independente para concluir que essa reforma, de quem o ministro disse que era “a maior desde D. Dinis” (por ironia trágica do destino é com este mesmo ministro que ardeu o emblemático pinhal que ainda hoje associamos a D. Dinis…), é no mínimo muito insuficiente, nalguns casos contraprodutiva. Muitas das sugestões dos especialistas contrariam o que foi legislado, a maioria propõe acções que não estão contempladas nas leis aprovadas.

“O governo não tem nenhuma varinha mágica.”

E nós também temos cada vez menos paciência.