Há coisas a que nunca me habituarei, e uma delas é esta coisa bem portuguesa de desconfiar de tudo o que tem sucesso, de estar sempre com nostalgia de um tempo que nunca existiu e, no fim do dia, de acabar por preferir ser “pobrete mas alegrete”, uma característica que muitos atribuíam à doutrina de Salazar mas que, para meu grande desgosto, está bem entranhada na nossa cultura secular.

Devo dizer que o mais recente exemplo dessa nociva forma de ser é a obsessão que vai por aí por, de repente, haver demasiados turistas no centro de cidades como o Porto ou Lisboa. De haver muitos investidores a recuperarem edifícios onde depois funcionam pequenos hotéis, ou hostels, ou onde surgem pequenos apartamentos vocacionados para o alojamento local. De os grandes paquetes que passam no Tejo taparem a vista a alguns restaurantes da esquerda chique. De as ruas estarem cheias e haver filas para entrar em museus e monumentos. De, crime dos crimes, alguns desses monumentos estarem a ser bem geridos e a darem lucro (lucro, imagine-se!, onde é que isso se viu).

Há activistas que fazem documentários, movimentos para salvar lojas “históricas” e académicos que se debruçam sobre o momentoso problema da “gentrificação” (um preconceito como este, para ser levado a sério e ganhar pergaminhos, tinha de vir associado a uma palavra cara, que lhe desse alforria intelectual).

Entendamo-nos. Os centros históricos de Lisboa e do Porto estiveram décadas ao abandono e a degradar-se. Os prédios caíam aos bocados, fosse no portuense bairro da Sé ou na lisboeta Mouraria. Houve mesmo um momento – Agosto de 1988 – em que grande parte do centro de Lisboa ia ardendo. Criaram-se comissões sem fim para debater a reabilitação urbana, gabinetes que empregaram centenas de pessoas e dos quais pouco ou nada resultou, programas públicos que subsidiavam generosamente quem fizesse obras de recuperação que nunca arrancavam e por aí adiante. Muita conversa quando pouco ou nada mudava. Porventura até piorava: não só a degradação continuava a corroer o tecido urbano, como este se ia desertificando.

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Tenho desses tempos uma memória vivida – de cidadão e de jornalista que inúmeras vezes escreveu sobre como salvar da ruína o centro das cidades. E por isso sei bem que a desertificação de que agora se fala é coisa bem antiga. Basta notar, por exemplo, que a extinta freguesia de São Nicolau, na Baixa lisboeta, tinha 3.961 habitantes em 1960 e apenas 1.175 em 2001, menos do que os 1.231 de 2011, altura em que, supostamente, a “gentrificação” já se iniciara; já no Porto, entre 1981 e 2011, as antigas freguesias de Miragaia, Santo Ildefonso, São Nicolau, Sé e Vitória perderam mais de metade dos seus habitantes.

Assim estávamos, em cuidados paliativos e cansados de promessas, programas, comissões e fundos especiais, quando de repente tudo mudou.

Primeiro, mudou o transporte aéreo. Os mesmos aviões que nos levam, por preços módicos, até aos destinos de férias que apreciamos, trazem aqueles que noutras alturas nem sonhariam em fazer uma curta escapada de fim-de-semana até este canto da Europa. Na década de 1980, há 30 anos, ir a Londres custava, em dinheiro desses dias, uns 80 contos (se incluísse uma noite de fim-de-semana). Ou seja, 400 euros que, depois da correcção monetária, corresponderiam a uns 1.300 ou 1.400 euros de hoje. Ora hoje, com esse dinheiro, quase daríamos a volta ao mundo. Mais: o transporte aéreo mudou porque nessa década de 1980 dois diabos neoliberais, Ronald Reagan e Margaret Thatcher, desregularam o transporte aéreo e permitiram um ambiente competitivo que não só fez nascer as low cost, como obrigou as companhias estabelecidas a baixarem os seus preços.

Cá dentro, entretanto, mudou a “lei das rendas”. Durante mais de um século – sim, o congelamento das rendas em Lisboa e Porto começou na I República – o centro das duas principais cidades portuguesas sofreu as consequências de um regime que tornava impossível aos proprietários garantirem a manutenção mínima dos seus imóveis. A essas leis, e às mais que tímidas reformas que pouco ou nada liberalizavam, devemos o facto de os mais novos terem sido expulsos para as periferias e o país inteiro ter-se tornado numa nação de proprietários, o que tem consequências económicas e sociais pesadas pela forma como condicionou e condiciona a vida das famílias portuguesas. Com a mais recente lei das rendas – uma das poucas reformas estruturais dignas desse nome dos anos da troika – esse garrote foi, finalmente, solto. E isso começou logo a notar-se no mercado do arrendamento, quer para habitação, quer comercial.

Se acrescentarmos mais uma mão cheia de medidas políticas – como a descomplicação e liberalização da actividade turística promovida por Adolfo Mesquita Nunes, as campanhas mais inteligentes de promoção de Portugal no exterior e a renovação das infraestruturas urbanas promovida pelas autarquias – percebemos como Lisboa e Porto podem hoje estar a beneficiar não só de uma procura turística internacional reorientada pelas diferentes crises no Médio Oriente e Norte de África, como de os investidores estarem a aproveitar um período de taxas de juro especialmente baixas.

Há meia dúzia de anos, quando voltei a frequentar com regularidade o centro de Lisboa, comecei a aperceber-me de um novo dinamismo que, felizmente, só se tem confirmado e aprofundado. Agora, ao trabalhar no velho Bairro Alto, vejo como todos os dias há mais prédios a ser recuperados e novos negócios a aparecerem esquina sim, esquina sim.

Mais: não são poucos os que, por estes bairros, recuperaram espaços que agora alugam com o apoio de plataformas como a AirBnB, encontrando novas formas de rendimento em tempos que continuam a não ser fáceis para muitas famílias.

Esta é toda uma nova vida que só pode ser bem-vinda, mesmo que de repente as casas nos bairrros históricos tenham ficado mais caras e menos acessíveis, o que é verdade. Acontece porém que, antes, ou não havia casas para alugar, ou muitas nem sequer tinham condições de habitabilidade. Nesse antes, como viver no centro da cidade não estava na moda, ninguém falava de “gentrificação”; agora que estes bairros voltam a ser apetecíveis, ei-los que choram por não se terem lembrado mais cedo de para ali se mudarem.

Mais: há muito barulho à noite? Sim, há, pelo menos em algumas ruas. Mas se olharmos mais de perto verificaremos que esse barulho tem mais depressa origem em noctívagos lusitanos do que em turistas de passagem. Deixem lá a “gentrificação” em paz, que as suas costas largas não dão para tudo.

Acabe-se pois com as hipocrisias. Primeiro, o passado era muito pior do que o presente. Depois, as novas formas de economia associadas às pequenas empresas turísticas ou ao alojamento local são caminhos com futuro, até porque permitem que sejam muitos os que beneficiam de forma descentralizada, isto é, que o dinheiro não fique apenas para os grandes operadores ou para as cadeias de hotéis. Por fim não esqueçamos o emprego que toda esta actividade gera – recuperar um velho imóvel histórico exige uma intensidade de mão-de-obra muito superior à de construir uma auto-estrada –, não desvalorizemos todo o dinheiro que dissimina pelos interstícios do tecido social.

Tal como os ludistas no início do século XIX tentaram parar a revolução industrial com medo do que esta traria, os nossos modernos ludistas gostariam de congelar a cidade no ponto que estivesse mais a sei jeito, ou fosse mais das suas conveniências. E o pior é que não falta quem lhes dê ouvidos, quem queira voltar a mudar, para pior, a lei das rendas, quem gostasse de perseguir plataformas como a AirBnB (mesmo os académicos de falinhas mansas podem ter uma alma de taxistas anti-UBER), quem até já tenha, por via do Orçamento do Estado, penalizado fiscalmente o investimento imobiliário e o aluguer de casas a turistas. Se prosseguirem poder estrangular uma das poucas áreas onde há dinamismo económico e se criam muitos empregos.

Para quê? Talvez para ficarem tranquilos na sua-cidade-sua, que em breve estaria de novo desbotada ou mesmo esboroada, mas que seria sua-sua até se cansarem de novo dela e dos seus velhos bairros. E, claro, tudo isto levando a mesma mediana e pretensiosa existência, aquela que só se incomoda quando alguma coisa parece funcionar, quando os outros tomam uma iniciativa que escapa à asa tutelar do Estado, quando dezenas e dezenas, cada um por sim, se atrevem a ressuscitar, sem o seu “planeamento” e supervisão, centros urbanos que estavam meio mortos.

Mas é esta a nossa triste sina, aquela que nos faz estar sempre a recordar que a última palavra de “Os Lusíadas” é “inveja”. Pois é.