Passei uns dias a reler um livro, já com uns anos, que é, no fundo, uma história das principais paixões políticas francesas ao longo do século XX: Le siècle des intellectuels, de Michel Winock. Começa com o caso Dreyfus e acaba praticamente com a recepção francesa do Arquipélago de Gulag de Soljenítsin e a queda do muro de Berlim. Como o título indica, as paixões em questão são as dos intelectuais, expressão criada exactamente na altura do caso Dreyfus. Vale a pena lê-lo. Não só para nos darmos conta de quão pouca gente, entre os intelectuais do século passado, soube manter a razão sóbria por um período de tempo razoável, mas também para perceber que, embora com vestes ligeiramente diferentes, essas mesmas paixões continuam entre nós.

Winock dividiu o seu livro em três grandes partes: a primeira, relativa ao caso Dreyfus e à sua posteridade imediata; a segunda, incidindo sobre o período entre o final da primeira grande guerra o o final da segunda; e a terceira, que lida com o segundo pós-guerra até, como disse, ao acolhimento reservado a Soljenítsin pelos intelectuais franceses e a queda do muro de Berlim. Não faria sentido tentar resumir aqui estas quase oitocentas páginas (excluindo apêndices, índices, etc.). Mas vale a pena dar conta de algumas lições fáceis de retirar da leitura do livro de Winock. Seguem-se algumas, como dizia o outro, “sem ordem nem desordem”, e igualmente sem referência a um só nome, o que é quase como representar Hamlet sem o príncipe, já que o livro se centra na análise relativamente detalhada da evolução de um sem número de príncipes, isto é, de intelectuais. Para quem estiver interessado, o melhor é mesmo lê-lo.

Não é difícil perceber quais as quatro grandes paixões políticas do século XX: o anti-semitismo, o anti-liberalismo, o fascismo (num sentido amplo, englobando o nazismo) e o comunismo. O pensamento democrático e liberal não suscitou nunca paixões intelectuais excessivas. Excepto, é claro, paixões negativas. Mas anti-semitismo, anti-liberalismo, fascismo e comunismo, sim. E é curioso ver como essas paixões se compuseram entre si. A composição do anti-semitismo com o fascismo é, a partir de certa altura, quase obrigatória entre os intelectuais, embora não seja obviamente necessária e haja excepções. Mas a paixão comunista também se pôde compor com a paixão anti-semita, e os exemplos não faltam. Em geral, de resto, as paixões negativas (anti-semitismo, anti-liberalismo) suscitam elementos de identidade entre as paixões fascista e comunista. Os anos 30 são exemplares disso, e um dos seus sinais indubitáveis foi a dificuldade de vários intelectuais, alguns muito improváveis, em se decidirem por uma ou por outra. Há casos notáveis de oscilação. Ou, então, a facilidade de transição efectiva de uma a outra.

Esta última situação é particularmente interessante. São vários os casos em que os intelectuais transitaram, plenos de convicção, de uma paixão comunista para uma paixão fascista. O trânsito inverso, da paixão fascista à paixão comunista, é, no entanto, muito mais raro. Isto indica sem dúvida algo de importante e que não é unicamente explicável em função da situação histórica. Tem certamente a ver com a própria natureza das paixões. A paixão fascista comporta provavelmente um princípio de fechamento maior do que a paixão comunista. Dito de outra maneira: é aparentemente mais fácil a um comunista mudar de paixão política do que a um fascista. Quer em direcção ao fascismo, como muitos fizeram, quer em direcção à aceitação da democracia liberal, ou, pelo menos, de uma qualquer forma de socialismo não totalitário. Mas discutir esta questão – uma questão decisiva, é verdade – levaria tempo.

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Seja como for, as quase oitocentas páginas do livro de Winock mostram-nos à evidência um facto inegável: a raridade extrema de casos de sobriedade intelectual, ou mesmo de casos de quase-sobriedade. Não é que não haja exemplos de intelectuais que, através da sua evolução, tivessem mantido uma coerência sóbria no seu pensameto político. Mas são relativamente raros. E os daqueles que guardaram, desde o princípio, sobriedade a toda a prova, mais raros são. O mais vulgar é observarmos exemplos de passionalidade desmedida no interior de uma mesma paixão ou na sucessão de uma paixão para outra.

A dimensão passional, e o concomitante abandono da racionalidade, tende a acentuar-se, de resto, no tempo que medeia entre o caso Dreyfus e a época dos compagnons de route do comunismo. Como nota Winock, existia, por parte daqueles que defendiam Dreyfus, uma preocupação argumentativa e uma busca da verdade que, pouco a pouco, foi desaparecendo no debate entre os intelectuais: com os compagnons de route, a adesão intelectual torna-se um acto de pura fé. É como se a imensa ilusão transcendental do comunismo automaticamente dispensasse qualquer preocupação, mesmo muito secundária, com as provas. Daí o rapidamente instaurado regime de negação relativamente a tudo que pudesse pôr em causa o ideal, a rejeição liminar da materialidade dos factos.

Até, pelo menos, ao terramoto provocado, em meados dos anos 70, pelo Arquipélago de Gulag de Soljenítsin, com a sua descrição detalhada do universo concentracionário soviético. Um fenómeno tipicamente francês, diga-se de passagem. Em nenhum outro país da Europa o livro funcionou de tal modo como uma revelação: já se sabia. Mas em França o peso espesso da passionalidade comunista e dos compagnons de route tinha, para muita gente, e apesar do processo Kravchenko em 1949 e de uma miríade de outras coisas, antes e depois, guardado surpreendentemente protegida de crítica a pátria inspiradora do “partido dos fusilados”: o “Sol da Terra”, como entre nós lhe chamava Cunhal. A partir daí, as coisas mudaram de forma significativa.

Não é que as quatro paixões dominantes dos intelectuais do século XX tenham desaparecido. Longe disso. Anti-semitismo e fascismo, graças àquilo que Kant denominava as virtudes civilizacionais da dissimulação, que fazem com que o nosso rosto adquira, pouco a pouco, a forma da máscara que a sociedade nos obriga a usar, não ousam já, nos intelectuais europeus, dizer abertamente o seu nome. Quando muito, dizem-no de forma indirecta que pretende ser irreconhecível. O “anti-sionismo”, por exemplo, substituiu o “anti-semitismo”. Com o comunismo, a situação é diferente. Os costumes públicos não interditam a manifestação dessa paixão. Se ela não se exprime como dantes, isso deve-se quase exclusivamente à manifesta redução do seu apelo. O anti-liberalismo, por sua vez, chama-se agora “anti-neoliberalismo”, e, como se sabe, há muita gente que anda com ele sempre na boca.

Essas paixões continuam a circular, mais ou menos à solta, por aí. Quando, novinho, saía do cinema depois de ver Os pássaros de Hitchcock, dois tipos, à minha frente, conversavam. “Ninguém diga que está bem!”, disse um ao outro, resumindo muito bem a essência do filme. Ora, é justamente isso que se deve dizer relativamente à vida presente dessas quatro paixões do século XX: ninguém diga que está bem.