Vivemos numa embriaguez pós-crise que pode sair-nos cara mas que parece impossível de evitar. Quem estiver sóbrio será sempre acusado dos mais variados defeitos. São assim as euforias, tal e qual como nos mercados financeiros, enquanto a música estiver a tocar todos terão que dançar.
Há um ano começava-se a perceber que a trajectória de desastre, antecipada para a política económica do Governo de António Costa, não se ia confirmar. O que se projectava antes disso (um parêntesis para dizer que também fui bastante pessimista) era a impossibilidade de repor salários e pensões ao ritmo acordado entre o Governo e os partidos que o apoiam. Ninguém acreditou e durante um ano pagamos o preço disso, como por exemplo com uma das agências de avaliação de risco a reduzir a perspectiva de positivo para estável.
É no fim do ano que de 2016 que se começam a ter certezas, primeiro com o acordo alcançado para a capitalização da CGD e mais tarde com os resultados das contas públicas e da economia. A trajectória deixou de ser linear, deixou de ser uma projecção do passado. Houve mudanças de conjuntura e rupturas, determinadas mais pela política do que pelas políticas.
Podem identificar-se três factores essenciais que convergiram para um resultado diferente do projectado. Ou, mediaticamente simplificando, para que “o diabo” não chegasse depois do Verão de 2016. Factores internos e externos que não foram devidamente tidos em conta.
O primeiro factor de mudança é o apoio do PCP ao Governo. Sem o apoio dos comunistas seria impossível a qualquer Governo controlar a despesa pública, de funcionamento e de investimento, como o fez António Costa em 2016. E esta foi uma via que ninguém antecipou. Ninguém colocou a hipótese de que era possível apertar ainda mais os gastos excluindo salários – compensando assim a “reposição salarial” – sem que isso gerasse uma onda de contestação. Mas foi isso que se fez contando com o silêncio dos comunistas que eram os que, em geral, denunciavam estas situações.
O segundo factor foi o da recuperação da economia a partir do segundo semestre de 2016, graças à retoma europeia e a uma dinâmica histórica do sector do turismo.
Por último, mas não menos importante, o terceiro factor reside em Bruxelas. A Comissão Europeia tornou-se menos ortodoxa nas suas exigências, o que se pode explicar pelo Brexit e pelo tempo eleitoral que se viveu na União Europeia, só concluído agora com as eleições alemãs.
Nada disto se poderia antecipar quando assistimos ao anuncio de uma política orçamental que parecia expansionista e que acabou por ser contraccionista em 2016. E tudo isto se conjuga com uma capacidade de comunicar única.
Há muito tempo que não se assistia a uma distância tão grande entre aquilo que se diz e aquilo que se faz. Ao ponto de todos nós estarmos concentrados na recuperação de rendimentos dos que ganham menos e nos esquecermos que, ao mesmo tempo, foi este Governo que acabou com as contribuições que recaíam sobre as pensões mais altas. Embora as contas sejam diferentes, o certo é que se repôs mais depressa esses rendimentos mais elevados do que os salários do sector privado que só agora poderão aspirar a um alívio fiscal.
A estes factores é preciso juntar o optimismo. Sendo a actividade económica em boa parte ditada pela confiança, esta actuação optimista, esta mensagem de fim de toda a crise, de viragem da página da austeridade, teve em si também um contributo importante para os resultados económicos que foram atingidos. O Governo de António Costa deitou para o lixo a folha de excel e arriscou. Colocou o país em risco mas como ninguém decide pelo que não aconteceu, António Costa arriscou e petiscou, como mostraram os resultados das autárquicas.
Embora esteja longe de estar errado, Pedro Passos Coelho enganou-se e fez o que devia fazer. Citando Pedro Santana Lopes esta semana na SIC: “é um homem do dever ser”. E não está errado nos alertas que tem feito porque Portugal está exposto a um enorme risco financeiro – medido pela dimensão da sua dívida externa – e vive há dois anos sem uma política económica, financeira e social que resolva efectivamente alguns dos nossos problemas mais graves. Entre os problemas que um dia teremos de enfrentar, além da dívida, estão obviamente o sistema de pensões e a saúde. Vamos ter problemas, só não sabemos quando.
É aliás irónico e ilustrativo, da fase de grande ilusão em que vivemos, que se diga que o PSD de Pedro Passos Coelho não tem políticas para o país quando na realidade tem sido o único a falar desses problemas. Podemos não gostar das soluções, mas não podemos dizer que não identifica os problemas e não apresenta uma via para os resolver. O mesmo não se pode dizer deste Governo que governa junto à costa, decidindo em função do que vai sendo a agenda mediática – agora é a habitação – e os segmentos de mercado eleitoral.
Hoje podíamos escolher a forma de resolver alguns desses problemas, controlar a solução, minimizar os danos. Mas ninguém quer. Tal como no passado quisemos acreditar que estávamos ricos e podíamos encher o país de auto-estradas e viver de crédito bancário, hoje voltamos à mesma crença do crescimento infinito de rendimentos, sem que se diga que para isso é preciso produzir mais e melhor.
Os erros de Pedro Passos Coelho foram esses. O de projectar o futuro de forma linear – não contou com a cumplicidade do PCP – e o de acreditar que era possível aos portugueses verem a realidade dos problemas que temos e não se deixarem iludir. E assim se transformou naquilo que o próprio designou como a “argamassa” desta solução governativa. Sem o querer, era o ex-futuro líder do PSD que estava a unir o PCP e o Bloco de Esquerda ao PS. Transformaram Pedro Passos Coelho – e Pedro Passos Coelho foi deixando que isso acontecesse — numa espécie de “lobo mau”: se não querem, vem aí a “direita e o corte de rendimentos”. Os resultados das eleições autárquicas, os piores de sempre do PSD, confirmaram que boa parte dos cidadãos sentiam o mesmo: não querem este líder social-democrata que os alerta para os problemas.
Ninguém quer saber do passado como também dizia esta semana na SIC Pedro Santana Lopes. Como também ninguém quer saber do futuro. Cansados de crise, queremos viver o presente. A história agradecerá a Passos o que fez pelo país. Esperemos que os portugueses não tenham também de se lembrar dos avisos que fez. Porque os problemas estão lá, à espera de serem resolvidos para não empobrecermos. Com esta solução governativa, já percebemos, não serão resolvidos, não existem condições políticas para isso. António Costa sabe isso como saberá também o novo líder do PSD. Até à formação de uma maioria diferente desta continuaremos nesta ilusão de infinita reposição de rendimentos que levou ao adeus de Passos Coelho.