Das profissões que entretêm relações com o mal, a de agente secreto é aquela que é geralmente considerada a menos má.   A reputação menos nefasta da profissão deve-se a dois factores:  o primeiro é a consideração de que uma vida de fingimento implica sofrimento e desconforto para o próprio, e estadias em sítios inóspitos (Berlim Leste) ou demasiado hóspitos (Nice); o segundo é a consideração  de que existe uma diferença entre fingir que se é outra pessoa por uma boa causa e fazê-lo por uma má causa.

Há todavia mais profissões que implicam sofrimento e desconforto para quem as exerce; e algumas incluem estadias noutros lugares.   A vida quotidiana do agente secreto não merece apenas por isso a leniência dos casos especiais.  E por outro lado é bem verdade que há mentiras com justificação.  Quando queremos perceber e julgar uma mentira temos que atender às circunstâncias e aos fins que a mentira serviu.  Não procedemos como o filósofo famoso, que imaginou que as mentiras são sempre detestáveis por atacado, e por isso nunca requerem um exame das circunstâncias.

Há assim um terceiro factor que merece ser tido em conta na descrição da actividade dos agentes secretos, e que não coincidindo necessariamente com o exercício de mentiras é o principal factor da ambiguidade moral que é atribuída à classe.   Inclui a exigência conhecida de repararem constantemente em coisas que ninguém repara, e de ouvirem coisas que ninguém ouve;  mas também de dizerem coisas que ninguém diz, e sobretudo de agirem em nome de terceiros.   Os agentes secretos são treinados para não serem pessoas que fazem coisas por razões que lá terão.   São treinados para não serem agentes.

No nosso comércio com os humanos, e exceptuando casos patológicos, tomamos como adquirido que as outras pessoas não estão sempre a reparar em coisas em que nós não reparamos, e a ouvir tudo com muita atenção.   Esperamos ainda que tenham manifestação física, ou seja, que quando estão por perto sejam vistas, como os outros animais, as plantas ou os minerais; esperamos que levantem os braços, façam barulhos ou mexam as pernas por essas razões que terão; esperamos que se refiram a um coelho que passa apenas quando é esse o caso; e na medida do possível que façam o que querem no nosso modo caótico normal; esperamos, em resumo, que não se distingam muito de si próprias.

Os agentes secretos não são treinados apenas para estar de serviço fora das horas de expediente dos nossos sentidos.  São também treinados para confundir as expectativas mais comuns sobre usar palavras, ter opiniões, e fazer coisas.   É essa ideia de uma pessoa educada para não ser o que supomos que qualquer pessoa é que sugere uma forma de comércio com o mal.  É essa suspeita que nem a dedicação dos agentes secretos às melhores causas ou os desconfortos por que passam consegue completamente atenuar.

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