Num daqueles momentos em que Portugal desata a pensar sobre como deve ser rico deu-nos para investigarmos as fileiras. Antes tinha sido o tempos dos clusters. Mas fosse com clusters ou com fileiras o resultado era o mesmo: não se chegava a acordo sobre a actividade em que apostar.

Pagos a peso de ouro vinham sábios das diversas partes do mundo, mas as dúvidas persistiam. Digamos que por cada português havia uma fileira ideal. A mania com as fileiras foi tal que ali no início deste século até a austera proprietária de um estabelecimento de fardas escolares, teorizava sobre a fileira ideal para Portugal. Enquanto pais, mães e respectivos filhos, esperavam que a senhora fizesse a soma do valor das calças e das camisas usadas pelos alunos de uns vetustos estabelecimentos escolares, dona Beatriz, assim se chamava a eloquente senhora, explicava que Portugal devia apostar na fileira do alterne. Assim mesmo, alterne.

Perante o ar ora céptico ora embaraçado do seu improvisado auditório acerca das potencialidades do sector do alterne para animar não apenas a vida de alguns mas também a economia de um país inteiro, dona Beatriz argumentava que tendo falhado tudo o mais só nos restava o alterne como sector sólido e com viabilidade.

Com um tom sério e didáctico a que só faltava o power point, dona Beatriz explicava as sinergias desencadeadas pelo alterne. Tudo começava naturalmente nos clássicos espaços de entretenimento nocturno, o que beneficiava não só as empresas do ramo como também as de equipamentos hoteleiros, bebidas, decoração, ménage, electrodomésticos, segurança privada e, pasme-se, até o sector cultural representado pela música ambiente. A fase seguinte, a da consumação da relação contratual entre as partes cliente/alternadeira, não trazia proventos para o Estado por não estar contemplada pelo fisco (ainda lá chegaremos, dona Beatriz) mas não devia por isso ser desprezada não só por constituir o momento chave de toda esta fileira mas também pelo seu contributo para o sector da hotelaria pois como é óbvio tudo isto implicava reservar quartos em hotéis que é como quem diz a utilização de camas o que por seu turno incrementava outros sectores, com destaque para o têxtil ao nível dos atoalhados e roupas de cama. Em seguida, e por razões complexas de explicar aqui mas que tinham a ver com a estimulação do apetite decorrente das fases anteriores, a restauração voltava a ser beneficiada, agora no segmento específico do fornecimento de refeições a que se seguia porventura, como complemento deste, o regresso aos locais de entretenimento nocturno, fechando o ciclo. Tudo isto implicava naturalmente deslocações com proveito para o sector dos transportes e dos combustíveis. Mas havia ainda muitos outros sectores privilegiados por esta fileira: farmácia, vestuário, maquilhagem, cabeleireiros, cirurgia estética, etc… Em matéria de raciocínio lógico dona Beatriz era imbatível!

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Ao longo dos anos tenho-me lembrado várias vezes de dona Beatriz e da sua fileira do alterne. Valha a verdade que já ouvimos (e pagámos) teorias bem mais parvas. Contudo, caso encontrasse agora dona Beatriz tinha de lhe dizer que o país tem desenvolvido e estimulado uma actividade bem mais rentável do que a fileira do alterne, embora os seus proveitos, ao contrário do que sucede com os do alterne fiquem concentrados num pequeno grupo: trata-se do combate ao enorme problema.

Em primeiro lugar há que ter em conta que para existir um “enorme problema” não tem de existir problema algum. Por exemplo, até o turismo ter sido declarado um enorme problema, o problema, não enorme mas problema, era não atrairmos turistas, não termos campanhas interessantes que levassem os estrangeiros a procurar-nos ou, quando isso acontecia, os turistas só se interessarem pelo sol e praia. Ora quando tudo parecia estar a correr bem, os investidores no sector do enorme problema disseram-nos que esse era o enorme problema: termos turistas e estes andarem pelo centros das cidades, aldeias e vilas. Fotografarem igrejas e eléctricos. Encherem os restaurantes. Em resumo, terem vindo.

De imediato o que era bom passou a ser mau, o sucesso tornou-se numa tragédia e desde então andamos a tropel do enorme problema do turismo até que outro enorme problema – quiçá o da falta de turistas pois algum dia o medo do terrorismo irá desvanecer-se e os turistas demandarão novamente o norte de África – nos leve para outra cruzada.

(A propósito convém que os reguladores da deontologia jornalística editem rapidamente um guia para referir os estrangeiros pois de repente temos duas versões absolutamente contraditórias na nossa imprensa: uma para os estrangeiros que são considerados turistas que segundo se lê e ouve na comunicação social descaracterizam as cidades, invadem as ruas e roubam o nosso sossego; outra para os migrantes/refugiados que há que integrar, dão cor às cidades e nos enriquecem com os seus costumes diversos).

Demonstrado à saciedade que não tem de existir problema algum para que se possa apostar no potencial do combate ao enorme problema, passemos para a segunda vantagem deste sector para quem nele investe: a ausência de risco.

Para os seus accionistas o combate ao enorme problema é um negócio sem risco pois o sucesso dos investidores no sector do combate ao enorme problema não passa de modo algum por acabar com o “enorme problema”. Antes pelo contrário de cada combate ao enorme problema (que frequentemente nem existe) nascem problemas ainda maiores que os mesmos investidores (para o caso auto-designados como activistas) de imediato também dizem ir combater. O resultado deste cluster de combates é que no fim os investidores-activistas ficam ainda mais prósperos e os restantes a braços com reais problemas que nesse momento já não interessam a quem quer que seja. Basta seguir o percurso do enorme problema que eram os grandes grupos económicos e industriais portugueses – como foi a CUF – para perceber que o resultado de todo esse combate foi nós ficarmos sem indústria. Escusado será dizer que os investidores no combate ao grande problema dos grandes grupos económicos foram combater outros grandes problemas com igual proveito para eles e desastres para os demais.

Para quem quiser ver como funcionam os investidores do combate ao enorme problema aconselho a que não percam as notícias sobre a Autoeuropa. Tudo começou com uma aparente boa notícia: o lançamento do T-ROC, que levaria a Volkswagen Autoeuropa a quase triplicar a produção atingida em 2016 e a contratar mais trabalhadores.

Mas onde os demais vêem boas notícias – logo ausência de problemas – os investidores no sector do combate ao grande problema vêem um risco: a sua inutilidade torna-se óbvia. E por isso passam de imediato ao ataque criando o grande problema. No caso da Autoeuropa o grande problema é o trabalho ao sábado: para responder ao acréscimo de produção, a administração da empresa propôs que a unidade passasse a funcionar de segunda a sábado, com os trabalhadores a terem uma folga fixa, ao domingo, e duas folgas consecutivas a cada três semanas. O acordo celebrado com a Comissão de Trabalhadores previa ainda um pagamento mensal de 175 euros adicional ao previsto na lei, 25% de subsídio de turno e um dia adicional de férias.

Mas tudo isto, segundo os investidores no grande problema, é um atentado aos trabalhadores e muito particularmente às suas famílias pois, argumentam, de modo algum estas podem ver um dos seus trabalhar ao sábado. Como se sabe as famílias dos trabalhadores da Autoeuropa não fazem compras ao sábado, não vão ao café nem aos restaurantes ao sábado, não vão à praia ao sábado para poupar os nadadores-salvadores da ignomínia do trabalho nesse dia… Nada de nada: ao sábado ficam em casa adorando-se uns aos outros. Nem a televisão ligam. E portanto a greve foi decidida na Autoeuropa para 30 de Agosto.

Pelo caminho a Comissão de Trabalhadores demitiu-se e os sindicatos, grandes investidores no sector do combate ao grande problema, estão a tentar controlar a Autoeuropa. Se levarem a melhor não é difícil antecipar os novos combates aos novos problemas: lá virá a manifestação contra a deslocalização da produção da Autoeuropa para um outro país. A que se seguirá a manifestação em Bruxelas – em que se integrarão alguns eurodeputados daqueles grupos parlamentares que são contra a existência de eurodeputados – para dar conta já não de um mas sim de dois enormes problemas: o enorme problema gerado pelo facto de a Autoeuropa estar a deslocalizar a produção de Portugal para outro país e o enorme problema que esse acréscimo de produção irá levar ao país para onde for transferido. Claro que há sempre a possibilidade de a produção ser deslocalizada para a Alemanha o que permitirá uma manifestação contra a senhora Merkel que é uma performance que fica sempre bem.

A isto juntar-se-á a delegação que vai ao parlamento português protestar contra as empresas que vêm para Portugal e depois desistem do país, os pedidos da esquerda patriótica para que o Governo que intervenha na Autoeuropa e o apelo de todos os grupos parlamentares para que se crie uma linha de apoio aos pequenos proprietários da região afectados pela diminuição de actividade na Autoeuropa. Um observatório dirigido por um clone do professor Boaventura observará os impactos da situação na Autoeuropa e um cineasta daqueles que são contra o capitalismo e andam de passadeira vermelha em passadeira vermelha pelas mecas do capital fará um filme alternativo sobre os homens sem esperança da Autoeuropa… Tudo sempre em nome do combate ao grande problema que pouco a pouco já nem se sabe qual era pois tantos e tais foram os outros problemas que houve que combater.

Pode ser que na Autoeuropa sejamos poupados a esta crónica do desastre anunciado que são os combates aos grandes problemas. Mas não tenho grande esperança porque os investidores nesse sector são tenazes. Ao pé deles os protagonistas da fileira do alterne não passam de uns amadores nos diversos sentidos que a palavra possa ter.