Facto 1: na guerra jurídica que opõe os colégios com contrato de associação ao Estado (concretamente, ao Ministério da Educação), o juiz Tiago Lopes de Miranda decidiu contra o Ministério em duas providências cautelares. Entretanto, já o Ministério da Educação havia solicitado (por três vezes) o afastamento do juiz, levantando suspeição de ausência de imparcialidade devido a um processo passado e não relacionado com as actuais providências. Por três vezes, os pedidos do Ministério da Educação para a escusa do juiz foram julgados improcedentes pelo Tribunal Central Administrativo do Norte.
Facto 2: no dia 2 de Agosto, o Jornal de Notícias (JN) fez manchete com a informação de que o juiz Tiago Lopes de Miranda teria a sua filha a estudar num dos colégios em causa nas providências cautelares e que, como tal, estaria sob um evidente conflito de interesses – “Juiz decide a favor de colégio onde a filha estuda” escreveu o JN. A confirmar-se a informação do JN, a conclusão seria inevitável: o juiz não reunia condições de isenção necessárias e as suas decisões, estando comprometidas, deveriam ser anuladas.
Facto 3: no próprio dia da publicação da notícia, foi emitido um comunicado do juiz desembargador presidente dos Tribunais Administrativos e Fiscais da Zona Centro, Antero Pires Salvador, que afirmou ser falsa a acusação exposta no JN. Afinal, o juiz em causa não tem a sua filha a estudar em nenhum dos colégios sobre os quais decidiu, mas num outro colégio com contrato de associação. Ou seja, não houve parcialidade e nenhuma das suas decisões ficou comprometida.
Facto 4: no dia seguinte, o JN publicou um desmentido da sua manchete – “Juiz não tem filha nos colégios de que julgou providência” – e uma nota da Direcção, explicando o sucedido: o jornal acreditou numa “fonte ligada ao governo, que reputava de credível” e que teria prestado informações falsas ao JN que, confiando, as publicou. Ou seja, alguém no governo, presumivelmente do Ministério da Educação, estaria directamente ligado ao caso e seria co-responsável pela difamação publicada.
Estes são os factos – objectivos, indesmentíveis e graves. Mas o episódio que eles narram passou praticamente despercebido no debate público. Não devia. Há aqui muita matéria para reflexão – e, já agora, acção.
Em primeiro, a questão mais óbvia e grave: o governo plantou num jornal uma notícia falsa, que atingiu o bom nome de um juiz (que, coincidência, o Ministério da Educação tentou afastar) e colocou em causa a validade, na opinião pública, das suas decisões (que, coincidência, foram em desfavor do Ministério da Educação). Não é necessário um conhecimento profundo dos fundamentos de um Estado de Direito para detectar que este comportamento persecutório é abominável em democracia, por constituir um ataque aos pilares da separação de poderes que suportam o regime. Num país e num regime que se dessem ao respeito, isto não seria um fait-divers ou uma polémica. Seria um escândalo político. E, no mínimo, abalaria a cadeira do ministro.
Em segundo, o episódio revela um modelo de jornalismo que confunde o dever de informar o público com o acto de difundir informações sopradas – de gabinetes, de sindicatos, de agentes interessados. Demasiadas vezes, os jornais facilitam, abdicam de confirmar dados e deixam-se instrumentalizar pelas suas fontes que, não tendo nada de inocente, são actores do jogo político e visam manipular o debate público em seu proveito, obtendo vantagens estratégicas na defesa dos seus interesses. Ora, é alarmante a ideia de que um jornal possa publicar notícias que atingem o bom nome de alguém, com potenciais consequências profissionais para o atingido, sem sequer se dar ao trabalho de confirmar a correcção da informação. Foi o que aconteceu neste caso – a falsidade só chegou ao papel porque o jornal, em nome da confiança que depositava na sua fonte, abdicou de a confirmar. A (ir)responsabilidade do jornal é máxima.
O episódio é daqueles que vale a pena fixar, uma vez que, sobretudo pelo facto de ter caído no esquecimento em minutos, explica muito do que funciona mal no país. O governo ataca um juiz que considera seu adversário plantando notícias falsas e difamatórias. Fá-lo porque, nos jornais, encontra quem, facilitando no rigor, publica o que lhe dão a publicar. E tudo acontece com impunidade porque deste lado – o dos leitores, dos cidadãos, da sociedade civil – já está tudo entorpecido demais para reparar. São estes episódios, que rodeiam o intolerável de silêncio, que confirmam o que, tantas vezes, nos recusamos a acreditar: que, entre indignações selectivas, Portugal vai mesmo tendo o que merece.