Enquanto lia a prosa xaroposa que em boa parte das publicações narrava a ida de Marcelo à Cornucópia tornou-se-me óbvio que estamos a viver uma alteração profunda dos equilíbrios institucionais do país: “Quando Luís Castro Mendes chegou, perto das 15h30, Marcelo Rebelo de Sousa já estava à conversa com Luís Miguel Cintra e Cristina Reis, os três rodeados de jornalistas, sentados no palco, e com outros atores à sua volta. “Senhor ministro, então já não foi a Castelo Branco”, saudou o Presidente da República. “Não, senhor, anulei a visita para vir aqui”, respondeu Luís Castro Mendes. “Então sente aí, que estávamos aqui a ouvir, e eles estavam a narrar”, retorquiu Marcelo Rebelo de Sousa.

Se repararmos nestas escassas linhas sobre a ida de Marcelo à Cornucópia e na complacência com que o país público e publicado reagiu ao que nelas subjaz, estão condensados os sinais dessa mudança: por um lado temos um Presidente da República a entrar claramente na área governamental, criando situações embaraçosas a um ministro que, tolhido no despropósito da situação, não pode ir além do papel institucional de figura de corpo presente. A alternativa a esse papel seria competir no engraçadismo, no “romper do protocolo” e no populismo com o Presidente. (Não dúvido que dentro em breve alguém o fará. À direita, como seguidores, e à esquerda para o desautorizarem.)

Mas não foi apenas um Presidente a reestruturar o seu papel e um ministro à procura dele que vimos na Cornucópia. O papel desempenhado na performance presidencial da Cornucópia pelos chamados agentes culturais é também ele bem significativo do momento que estamos a viver no país: a nova situação política mudou radicalmente o perfil das personagens, todas elas, e as do mundo da cultura não só não são excepção como funcionam como um símbolo dessa mudança. Assim em vez de gritarem indignadas contra a morte da cultura, como é seu costume, apresentavam-se cordatas, conformadas até, como se estivessem imbuídas daquela paz de espírito que emana dos que cumprem um destino. Aliás não fosse a irrupção de Marcelo por aquele palco e a Cornucópia acabaria sem uma manifestação de protesto, sem um cordão humano, entre declarações piedosamente fúnebres dos seus pares. Querem imaginar o estardalhaço de indignações que iria pela pátria caso este encerramento tivesse sido anunciado em 2012?

Esta peronização do regime que Marcelo está a efectuar, por enquanto com a complacência instrumental da esquerda, implica alterações à direita, sobretudo no seu partido de origem, o PSD. É preciso que o PSD se desembarace de Passos. Porquê? Porque Passos, que já foi primeiro-ministro e ganhou as eleições em 2015, não se vê como um auxiliar de Marcelo a desempenhar o papel de tecnocrata que tão bem assenta, por exemplo, em Paulo Macedo, caso a resposta para uma surpresa vinda dos mercados, seja uma solução governativa sob o alto patrocínio político e afectivo do Presidente da República.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas mesmo que esse cenário não aconteça e este governo cumpra o seu mandato ou António Costa consiga um argumento mediaticamente válido para antecipar eleições, Passos continua a estar a mais porque ele é o homem de 2011, esse ano que nunca aconteceu, como escreve João Marques de Almeida. Ou que, tendo acontecido, foi o resultado de Wall Street, da austeridade imposta por Schauble, da falta de afectos de Cavaco Silva… e não dos nossos actos e dos actos de quem nos governava e tinha governado.

Com Sócrates arredado de cena e cada vez mais transformado numa personagem grotesca de quem todos se afastam (ah como vão longe os tempos da romagem para Évora e das horas de discussão sobre a prisão na manga do avião!) sobra Passos como testemunha desses tempos. Afastá-lo surge por isso como um gesto indispensavelmente natural no argumento da peça “Somos ricos porque o primeiro-ministro diz que sim e o PR fez uma selfie com as ex-vítimas da crise”, não em cena na Cornucópia mas na televisão, rádio ou jornal mais próximos de si.

É Paulo Macedo o senhor que se segue no Governo? Depende de Mario Draghi e da agência de notação DBRS. Ou seja, depende de Costa conseguir comandar o processo de novas eleições ou pelo contrário ser obrigado a aceitar uma solução presidencial para uma crise.

Seja como for, Presidente e primeiro-ministro coincidem num ponto: há que escolher bem o homem que vai suceder a Passos.

PS. Estranho que na discussão em torno do Forte de Peniche e da memória prisional que lhe está associada se apague a memória a história daquele forte entre 1917 e 1919. Recorde-se que no dia 20 de Abril de 1916 os cidadãos alemães residentes em Portugal foram confrontados com um decreto que lhes confiscava os bens e dava cinco dias para abandonarem Portugal. Com os bens confiscados e tendo em conta que a possibilidade de deixar o país não era extensível aos homens entre os 16 e os 45 anos, a muitas famílias alemãs só restou serem levadas pelas autoridades portuguesas para o então designado Campo de Concentração de Peniche ou Depósito de Súbditos Inimigos. Homens mulheres e crianças alemãs aí ficaram entre 1917 e 1919. Essa memória também faz parte da nossa História.