Portugal tem mesmo o melhor SNS do mundo? Não. Mas comecemos pelo início.
Na sua crónica do Público, publicada a 14 de Novembro, Rui de Albuquerque faz um exercício interessante, aliás bastante explorado na literatura de economia da saúde e análise comparativa, que consiste em comparar o nosso sistema nacional de saúde com outros sistemas de saúde. A tarefa é homérica. Os sistemas de saúde são altamente complexos, e é difícil aferir os outputs, isto é, aquilo que o sistema é capaz de produzir. Uma alta médica é um bom output? E se o paciente falecer passado dois dias? Ou se for readmitido? Mesmo considerando os outcomes, uma medida mais extensa e que compreende toda a sequência de episódios de um determinado paciente, o problema não é menos difícil.
Não obstante a dificuldade em aferir a qualidade dos sistemas de saúdes, existe de facto uma diferença substancial entre os vários sistemas que vigoram no Reino Unido, Portugal, Suécia ou Espanha, e em países como a Alemanha, Áustria, Suíça ou Países Baixos. Enquanto que no primeiro caso existe um sistema inteiramente público, financiado com recurso aos impostos, que gere uma rede de cuidados primários, hospitalares e continuados, assim como contrata os recursos necessários ao funcionamento dessa rede (modelo Beveredgiano), no segundo existe um sistema de seguro social, em que o Estado garante um seguro de saúde e pode, ou não, gerir uma rede hospitalar, mas não limita os prestadores que podem actuar no âmbito da comparticipação pública (modelo Bismarckiano). Embora seja uma analogia redutora, seria como se todos os portugueses tivessem acesso ao subsistema da ADSE, tendo inteira liberdade para procurar o prestador, público ou privado, que bem entenderem.
Perante isto, o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva enceta um contraditório onde procura elencar os méritos do SNS português. Com a assertividade que lhe é característica, define mesmo o SNS como “o melhor do mundo” se considerarmos o trinómio acessibilidade, qualidade e custo per capita. Independentemente de quaisquer outros considerandos, é inegável que o SNS é um bom sistema de saúde. Que seja o melhor é que já é altamente discutível.
Atente-se ao seguinte gráfico (este gráfico consta de uma publicação científica [1], de que sou co-autor, onde se procura encontrar uma forma fidedigna de comparar os sistemas de saúde e no final agrupar os sistemas de saúde que são comparáveis). O exercício é simples — cruzamos dois indicadores críticos na avaliação dos sistemas de saúde: a taxa de mortalidade estandardizada para as doenças mais representativas (por 100 mil habitantes) e a taxa de morbilidade da população, neste caso medida em número de altas hospitalares para esse mesmo grupo de doenças. Um indica-nos o número de mortos por doença. Outro indica-nos a incidência da doença. Baixa mortalidade e alta morbilidade significa que o sistema de saúde é aparentemente eficaz, pois consegue tratar os pacientes sem que estes morram. Um sistema com uma alta taxa de mortalidade e baixa morbilidade sugere que o sistema é ineficaz. Já um sistema de saúde com baixa (elevada) mortalidade e baixa (elevada) morbilidade não permite inferir quanto à eficácia. Isto porque a mortalidade pode ser baixa (elevada) apenas porque a morbilidade, que indica o estado de saúde da população, é muito baixa (elevada) — isto é, a população é sã (doente).
O gráfico sugere, antes mesmo de recorrer a técnicas econométricas muito avançadas, que o sistema de saúde não explica os resultados em termos destes dois indicadores (os sistemas Beveredgianos e similares estão a azul e os sistemas Bismarckianos estão a laranja). Ou seja, que a tipologia do sistema de saúde não garante necessariamente uma população mais sã. No entanto, para níveis de morbilidade superiores aos registados em Portugal e com sistemas de saúde Beveredgianos existem países, como Espanha ou Itália, com níveis de mortalidade inferiores. Ou seja, com melhores resultados.
A comparação com Espanha ou Itália não é espúria. Quando aos indicadores de morbilidade e mortalidade acrescentamos outros como os recursos humanos e físicos (capital) disponíveis, indicadores socio-económicos e indicadores de utilização dos recursos (v.g. número de camas ocupadas), é possível arguir que estes são os países com os quais Portugal se deve comparar. E, no entanto, tanto em Espanha como em Itália a despesa total em saúde, em % do PIB, é inferior à de Portugal (OECD Health Statistics 2015, pp.167). E no caso particular de Espanha, estes conseguem melhores indicadores com menos enfermeiros e com menos médicos no activo, isto é, com menos inputs. Quando decompomos essa despesa percebemos porquê: 48% da despesa de saúde em Portugal é para cuidados em ambulatório, geralmente atendimento hospitalar, fruto do baixo recurso aos cuidados primários, por exemplo em centros de saúde ou clínicas privadas. Ora, os cuidados em ambulatório em hospitais são, regra geral, muito mais caros que os cuidados primários.
Precisamente na área dos cuidados primários existe uma enorme capacidade instalada de operadores privados que poderiam ajudar a prover os cuidados de saúde necessários sem que isso signifique necessariamente custos acrescidos para o sector público. Espanha, curiosamente, fez recentemente passar legislação que prevê leilões de cuidados de saúde a um preço sempre inferior ao custo interno para o SNS espanhol, desta forma garantindo que a referenciação externa para o sector privado não onera o contribuinte. Bem pelo contrário.
Investigador. Doutorando em Economia da Saúde. Assistente convidado na Universidade do Porto.
[1] – Amorim Lopes. A, Soares C., Almeida A., Almada-Lobo B (2015) – Comparing comparables: an approach to accurate cross-country comparisons of health systems for effective healthcare planning and policy guidance. Working paper FEP 563. Publication pending on Health Systems (Palgrave Macmillan).