Qualquer perfil ou biografia de Lula começa com o menino Luiz Inácio a vender laranjas e amendoins no Cais de Santos. Até parecia o Zezé, o moleque de O Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos, que ensinou a muitos de nós, que lemos em língua portuguesa, que o mundo não era só o que víamos da janela da nossa casa. Luiz Inácio cresceu, tornou-se operário metalúrgico de profissão e sindicalista por vocação, ganhou a alcunha de Lula, uma corruptela de Luiz, que veio inscrever como apelido (no sentido do português de Portugal), por ser a sua marca registada por uso tão repetido. Rapidamente passou a sindicalista-político, e foi membro fundador do Partido dos Trabalhadores que, em 1980, juntava um conjunto alargado de sensibilidades de vários tons da esquerda brasileira.
Tentou a presidência três vezes sem sucesso. Perdeu uma vez para Collor de Mello e duas para Fernando Henrique Cardoso. À quarta foi de vez. Em 2003 o menino das laranjas mudava-se para o Palácio do Planalto prometendo fazer diferente quer interna, quer externamente. Em parte, cumpriu. Não mudou o mundo, porque isso não está ao alcance de ninguém, mas fez três coisas notáveis: quebrou o ciclo vicioso do estado social brasileiro, resgatou milhares da pobreza e elevou o estatuto internacional do Brasil.
O estado social brasileiro, tradicionalmente, protegia a classe-média e a classe média alta, deixando os mais desfavorecidos desamparados. Lula da Silva não caiu na esparrela (nem na demagogia) de tirar benefícios aos mais desafogados, mas alargou o acesso à saúde e à educação e criou novos programa de inserção social como a Bolsa Família, a Fome Zero ou a Minha Casa, Minha Vida, que foram quase unanimemente considerados um sucesso, dentro e fora de portas.
Além disso, usou o crescimento económico (mérito também de FHC e do seu Plano Real e do próprio mercado, muito favorável aos países em vias de desenvolvimento nos anos 2000) dos oito anos dos seus dois mandatos para criar ou apoiar a criação de 14 milhões de postos de trabalho na economia formal. Feitas as contas, de 2003 a 2008, 25 milhões de brasileiros deixaram de viver abaixo do limiar da pobreza, e ainda que a chamada classe C não corresponda exatamente a um novo estrato social, como muitas vezes nos fazem crer, os números são claros: 14 por cento dos brasileiros terão deixado de viver em condições tão abjetas.
O terceiro grande triunfo de Lula da Silva foi na arena internacional: o acelerado crescimento económico aliado a uma cuidadosa diplomacia pré-eleitoral – como nos conta o politólogo brasileiro Matias Spector no seu excelente livro 18 Dias – conseguiu convencer os adeptos do mercado livre (nessa altura na crista da onda do prestígio internacional) que o PT não era anticapitalista, nem trazia ideias dos seus tempos mais radicalizados. O Brasil era um país no qual se podia confiar. E a política económica de Lula foi, de facto, suficientemente ortodoxa para não aborrecer ninguém. Este cenário foi aproveitado com mestria pelo então presidente brasileiro: procedeu à nomeação da linha diplomática mais dura para os lugares-chave do Itamarati (o Ministério das Relações Exteriores) e arquitetou uma política externa de contestação dos Estados Unidos sem verdadeiramente os afrontar – o chamado soft-balancing –, deixando para trás estatuto gasto de “média potência” e ganhando o de “potência emergente” (as expressões são de Sean Burges, um brasilianista canadiano), que se aplica a estados que começam a ter uma palavra a dizer nas decisões internacionais. Assim, o Brasil voltava a estar no mapa dos estados detentores de prestígio mundial.
Por todas estas razões, Lula tornou-se o herói do povo brasileiro. Não só pelo que verdadeiramente fez pelos mais necessitados, pelo acelerado crescimento económico, pela notoriedade que conferiu ao Brasil enquanto ator internacional – que teve um impacto muito positivo nos negócios, até pela introdução da China como parceiro comercial privilegiado –, mas também, senão principalmente, porque encarnou o “sonho brasileiro”: foi de Zezé das Laranjas (Limas) a presidente da República, sem nunca se esquecer e falando repetidamente das suas origens. Dizem as estatísticas que o Brasil democrático nunca teve um chefe de estado tão popular.
Mas como demonstrou o gesto atabalhoado de Dilma Rousseff, que o nomeou ministro da Casa Civil à última da hora para lhe conferir imunidade, e as condenações sucessivas por tribunais de primeira e segunda instância por corrupção passiva e branqueamento de capitais – esta quarta feira o recurso à sua condenação foi agravado de nove anos e seis meses para doze anos e um mês –, Lula não resistiu à corrupção endémica da política brasileira. Agora, os tribunais andam numa corrida contra o tempo para que o novo recurso seja analisado antes das eleições presidenciais, porque no sistema legislativo brasileiro os cargos públicos podem ser exercidos por arguidos (mesmo já condenados) que não esgotaram os apelos a instâncias superiores.
Há três razões institucionais que explicam o comportamento de Lula. A primeira é que o Brasil é um país de clientelas. Houve quem tivesse esperança que o PT fosse mais resistente. Mas isso só se justifica se não atendermos às duas razões seguintes.
Por um lado, o sistema institucional brasileiro é dominado pelo “Centrão” da Câmara dos Deputados. Este termo designa a maioria necessária no Congresso, para aprovar qualquer lei. O sistema político-partidário do Brasil profundamente fragmentado (neste momento o Centrão é constituído por treze partidos conservadores, fora os da oposição) e os ministros da República vêm de cinco formações políticas diferentes. Além disso, os deputados podem mudar de partido em qualquer momento da legislatura e fazem-no com frequência. Segundo a Folha de São Paulo, só no governo Temer, 25 por cento dos detentores de cargos parlamentares já mudaram de filiação. Ora isto torna o sistema político muito poroso e suscetível à corrupção. E o PT, que nunca tinha ganho eleições antes de Lula, já era um partido com forte expressão parlamentar. Já tinha, portanto, a sua própria clientela, que só aumentou com a subida de Lula ao mais alto cargo da nação.
Por outro lado, a economia brasileira está muitíssimo dependente do Estado (ou por lhe pertencerem a indústria e as grandes empresas, ou por serem os maiores compradores e utentes de bens e serviços do sector privado). Este modelo também convida à corrupção, uma vez que o sistema económico está dependente das decisões políticas. O resultado é a criação relações privilegiadas entre uma elite endinheirada e os agentes que permitem ou vetam a continuidade do seu acesso à riqueza.
Seria inevitável que Lula se deixasse corromper? Em política há incentivos, mas não há inevitabilidades. O líder histórico do PT poderia ter feito diferente. Mas não fez e encontrou pela frente uma nova geração de juízes determinados a tornar o Brasil um país mais livre de corrupção e mais democrático. Está muito longe de ser caso único, mas é um caso simbólico que não deixa ninguém indiferente. Cortaram-lhe o pé de laranja lima. E ainda que o PT reaja com o anúncio da sua candidatura à presidência nas eleições a ocorrer este ano, até agora a justiça vai à frente, e é possível que Lula seja preso antes de poder sentar-se na cadeira do poder (assumindo que seria eleito). Ainda apoiado por uma parte significativa dos brasileiros, que se juntaram nas ruas para o apoiar, terá poucas hipóteses de voltar a governar. E mesmo que o consiga, quem perde é o Brasil. O prestígio internacional e o investimento estrangeiro caem a pique quando há suspeitas tão fortes de que o presidente é corrupto.
Tenho ouvido dizer muitas vezes que há políticos que “roubam”, mas fazem muito em prol da população. Por isso podem ser eleitos outra vez. Lula é o caso paradigmático. Mas uma mão não lava a outra. Num estado de direito o poder político não pode estar acima da justiça. Enquanto a política estiver dependente de jogos de interesses, países como o Brasil, que escolheram a democracia como tipo de regime e têm enormes potencialidades para serem grandes potências, terão sempre o seu futuro adiado. Quando Maquiavel escreveu que o Príncipe tinha uma moral diferente dos governados estava a criar um princípio moral: os meios justificam a bondade dos fins, justificam os benefícios finais para o bem comum. Na corrupção não há ligação direta entre uma coisa e outra. Há apenas enriquecimento ilícito. Que, inevitavelmente, corrói a saúde das democracias.