Marcelo, Ano 1. E primeira entrevista. Durante 36 minutos o Presidente da República trocou os “afectos” (julgo não ter ouvido pronunciar sequer a palavra) por um optimismo à prova de bala. “Graças aos portugueses”, e naturalmente graças a ele mesmo, o país está irreconhecível. Pelo menos ele assim o disse, vestindo a pele de um árbitro que não resiste a dar também uns toques na bola e, no fim, ainda levar a bola para casa.

Bancos? Era o caos e agora tudo está bem encaminhado. Crescimento? É poucochinho mas talvez venha a ser melhor. Dívida pública com juros a subir? Um detalhe. Sinais de tensão na geringonça? O que interessa é a estabilidade e o horizonte passou agora (para o Governo e a oposição) a ser o da legislatura, já não o das eleições autárquicas.

O Presidente hiperactivo que entende dever estar sempre a explicar tudo – o que ele faz, o que faz o Governo, porventura o que faz o treinador da selecção – sabe que pode estar num momento de viragem. Até agora ele deu colorido a uma tradição: depois de eleitos pela primeira vez, os Presidentes tratam de se reconciliar com a metade dos portugueses que não votou neles. Fê-lo Soares (que em momentos decisivos afrontou mesmo o seu próprio partido) e fê-lo Cavaco (que, ironias da História, elogiava o Governo de Sócrates para irritação do PSD de Marques Mendes). Cavaco até conseguiu – recordou-nos este sábado o Expresso – chegar ao fim do primeiro ano de mandato com mais popularidade do que Marcelo tem hoje, o que mostra como nem só de “afectos” se faz a política e se consegue uma ligação forte ao eleitorado.

É estranho Marcelo, eleito pela direita, ter sido um esteio de um governo que essa mesma direita continua a ver como pouco natural? Não tinha de ter sido assim, mas foi o caminho que escolheu, e que o enredou. Os sinais dos últimos dias, mostrando que a geringonça pode desentender-se mais depressa do que todos passaram a assumir depois da aprovação do último orçamento, devem ter feito soar os alarmes em Belém. Marcelo não quer, pelo menos para já, uma crise. Até porque sabe que são as crises que verdadeiramente desgastam os Presidentes, e ele quer continuar a ser amado, beijado e selfiezado.

Mas com esta entrevista, ao tornar-se quase um alter ego de António Costa correu um risco: o inquilino de Belém deixou de estar apenas a dar ao primeiro-ministro as melhores condições para governar, mesmo que deixando avisos para mais tarde recordar (como as 39 notas que colocou no site da Presidência sobre outros tantos diplomas que mandou para publicação). Depois desta entrevista ele é também passou a ser mais do que o “explicador” das escolhas do vizinho de São Bento. Na verdade tornou-se no mesmo tipo de “optimista crónico e por vezes ligeiramente irritante”, para utilizar as suas palavras. Não era preciso. O país não tinha disso necessidade. Ao menos que ficasse pelos afectos, que são mais inofensivos.

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