Este texto não é corporativo. Ou antes: é. Ou melhor: é mais ou menos. No meio de tudo o que tem acontecido, a última coisa que eu queria era escrever sobre jornalistas. Mas tem mesmo que ser, porque, nos últimos dias, regressou a velhíssima caricatura do jornalista-abutre. Aqui no Observador, por exemplo, Miguel Tamen seguiu esse tortuoso caminho; no Público, a quota foi preenchida por António Guerreiro; na SIC Notícias, por José Pacheco Pereira.
Sobre isto, é preciso dizer duas coisas.
A primeira é que ser jornalista, ao contrário do que pensam alguns críticos, não é estender um microfone e ouvir alguém numa conferência de imprensa. Ser jornalista é acordar de manhã e não saber onde se vai estar à noite – ou como se vai estar à noite. Um exemplo: nos últimos meses, houve jornalistas do Observador que acordaram de manhã em Lisboa e à noite estavam em ruas em estado de alerta, com ameaças de atentados terroristas. Outro exemplo: no último sábado, houve jornalistas do Observador que acordaram em três cidades portuguesas diferentes e, pouco depois, estavam a meter-se em carros em direção a um fogo assustador.
Portanto, o primeiro ponto é a coragem. Claro que ninguém quer comparar jornalistas com bombeiros, com polícias ou com elementos da proteção civil – é evidente que todos eles correm infinitamente mais riscos do que os jornalistas. Mas, mesmo assim, convém assinalar este detalhe: quando todos os nossos instintos nos dizem para nos afastarmos de uma situação de perigo (seja um terrorista que mata ou um incêndio que se propaga), os jornalistas têm que ter a coragem de fazer o contrário. Não são uns tontos que andam perdidos no meio do nada com um microfone, ou uma caneta, nas mãos, sem noção da fronteira que separa a segurança da insegurança – são alguém que escolheu uma profissão que, por vezes, os leva a correr riscos.
O segundo ponto é a ética. Os críticos vêem cada jornalista como uma Leni Riefensthal de pacotilha – o seu único objetivo, segundo dizem, é tornar o horror num espetáculo. Um jornalista mostra um fogo descontrolado? É um aspirante a Wagner. Um jornalista faz uma pergunta a alguém que perdeu tudo? É um exemplo de vileza. Um jornalista conta a história de uma vítima? É um adepto da “masturbação da dor”.
Lamento, mas não é nenhuma dessas coisas. A obrigação de um jornalista (e não uso a palavra “obrigação” de forma leve) é mostrar aquilo que vê — mesmo aquilo que às vezes outros preferiam que não víssemos ou aquilo que nós próprios, em certas alturas, preferíamos não ver.
Já agora, uma pergunta (e não, não vou entrar no Grande Cisma das Perguntas, que tem agitado algumas redações por estes dias): alguém acha que um jornalista regressa a mesma pessoa de um sítio como Pedrógão Grande? Há poucas semanas, depois do atentado em Manchester, uma jornalista de televisão estava a entrevistar em direto a mãe de uma adolescente que desaparecera no concerto de Ariana Grande e, ao fazer uma pergunta, ia começar a chorar. Em poucos segundos, recompôs-se e pediu desculpa: “Se eu ficar emocionada, isso não vai ajudar ninguém”.
Repito: eu não queria escrever sobre um assunto que é insignificante perante tudo o que se está a passar. Mas houve quem trouxesse de volta a pergunta clássica sobre se os jornalistas são abutres. Se não for dada uma resposta clara a isto, alguém pode ficar com a ideia de que a pergunta faz sentido ou de que (valha-nos Deus) a resposta é sim. Por isso, convém ser direto: não, não somos abutres.