Há razões para em Portugal se usar a palavra ‘tragédia’ para uma classe larga de acontecimentos, que inclui o genocídio e o desaparecimento do vinho de Carcavelos. As palavras ‘acidente’ ou ‘desastre’ parecem insatisfatórias, porque de facto não prometem nada: apenas indicam que uma coisa violenta, triste, e inesperada aconteceu. ‘Tragédia’ pelo contrário garante que aquilo que aconteceu é um episódio numa história muitíssimo maior, normalmente oculta, e por isso susceptível de ser revelada.

Encarregam-se das revelações os jornalistas, que explicam o sentido do que acabou de se passar e transmitem histórias de interesse humano. O trabalho de jornalista cobre de uma capa de vileza moral tudo o que é o caso: sugere que há uma explicação para os acontecimentos, que naturalmente é a que ocorre aos jornalistas; e transforma tudo o que lhes interessa em interesse. Os jornalistas alegarão que a sua profissão se ocupa do interesse humano: mas na realidade o interesse humano de tudo o que acontece coincide sempre com o seu interesse profissional; nada do que é profissional lhes é estranho.

A economia daquilo a que chamam tragédias é favorável à comunicação social. Enquanto nos períodos normais a televisão e a imprensa vivem de luzes, música, plumas, comentadores e lantejoulas, que têm de ser pagos e custam muito dinheiro, um acontecimento imprevisto fornece grandes cenários naturais e humanos a baixo custo. A consequência evidente para quem presta atenção a esses acontecimentos é a atenção extraordinariamente demorada a tudo aquilo que sai de graça. Num barranco em chamas, e entre blocos de publicidade, o mesmo jornalista improvisa infinitamente sobre o barranco em chamas; e quando escasseiam imagens variadas de barrancos em chamas, o mesmo jornalista improvisa infinitamente sobre as mesmas imagens. O seu género é a stand-up tragedy.

Mas são os cenários humanos obtidos de graça que tornam o espectáculo mais repelente. Nessas alturas o jornalista aproxima-se pé ante pé e faz perguntas que sabe antecipadamente serem de êxito garantido. É o herdeiro das mães que gostam de ver os filhos a chorar, e das crianças que arrancam as pernas às moscas. A sua vileza maior consiste em tornar pessoas vis: em deliberadamente e com premeditação converter o mundo num repositório de figurantes em que cada pessoa paga o seu aparecimento na televisão com o espectáculo público daquilo que em circunstâncias normais lhe deveria aparecer apenas em sonhos.

Embora alguns jornalistas gostem de se mostrar entre pessoas mortas, são os barulhos e os gestos das pessoas vivas que lhes permitem ocupar o tempo de emissão com mais proveito; e são eles que mobilam com conteúdos o que de qualquer maneira os jornalistas nunca conseguiriam por si só imaginar: um cão, um filho, um tractor, uma mala de roupa. Visto o que se tem visto, os acontecimentos recentes sugerem que nem sempre será boa ideia não matar o mensageiro.

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