1. Anda para aí um rebuliço com as autárquicas mas interrogo-me se ele existe mesmo (o rebuliço) fora do palco da media e por detrás dos gigantescos (dinheiro fresco) mas modestamente inspirados cartazes eleitorais.
Sem o artifício dos holofotes e longe dos debates (?) eleitorais, não sei o que pensa, vê ou sente “municipalmente” o sempre nestas ocasiões útil país real. Provavelmente nada e fará bem: ou muito me engano ou pouco se alterará. O país, montado na geringonça, anda feliz e quem não vive feliz a rolar no crédito? Para quê dar-se se ao trabalho de ir votar ou arriscar mudanças de “rumo”ou sabe-se lá que outras trapalhadas? E assim sendo tudo se confina ao interior das ferventes moradas partidárias e às especificas circunstâncias de cada uma delas: à esquerda a perene batalha entre o BE e o PCP com um (ilusoriamente?) olímpico PS a pairar sobre a desabrida luta; à direita, a estupidíssima (para ambos) concorrência entre o CDS e o PSD. E se a isto se acrescentar o duelo íntimo de Assunção Cristas com ela mesma, isto é, com aquilo que aos nossos olhos ela parece (porquê?) ter tornado um marco vital (ultrapassar o número de votos obtidos há anos por Paulo Portas em igual corrida lisboeta), o que se observa é uma guerra política pouco autárquica. Por de trás dos interesses e expectativas de qualquer munícipe o que há são as as ambições e as contas (e os seus ajustes) das famílias partidárias. Foi sempre assim em eleições municipais? Não.
2. A media ganharia o euromilhões se o CDS ultrapassasse o PSD em Lisboa mas apesar dos erros — escolhas, calendário, campanha — eu seria mais prudente em tal vaticínio. Em contrapartida posso facilmente antecipar o que seria a festa rija nos écrãs se tal acontecesse: uma ocasião extra de insultar o PSD e a sua liderança, prosseguindo aquilo que se tem vindo a tornar um tique convulsivo. Sucede que na curva da primeira eleição legislativa que lhes surgisse pela frente (ao CDS e ao PSD) tudo voltaria aos seus lugares de sempre e nisso, sim, eu apostaria.
Nada disso interessa muito, porém. O fulcro e o “ponto” destas autárquicas não residem tanto nas pequenas, médias ou grandes questões internas do CDS e do PSD — que de modo algum desvalorizo — mas antes no estado de saúde da direita-toda-ela, com uma geringonça a girar em fundo. Da direita do PS até ao extremo CDS, com independentes pelo meio ou gente que não se vê, nem revê, nos projectos de sociedade da esquerda, que aí está, o espaço é maior do que se pensa. Maior e doente. Fora do perímetro partidário do PSD e do CDS já de si pouco famoso pese embora a sua tenacidade, esse imenso espaço está desinteressado, abúlico, desnorteado. Valsando entre o queixume, a maledicência, a desistência (ou tudo ao mesmo tempo) não intervém, nem sequer contradiz. Deixou-se abafar, não sabe o que pensar, nem o que fazer. Presume-se que discorde da esquerda mas a discordância é oca e não há mobilização que a ilustre ou substância que a encarne. Se por absurdo este enorme espaço se sumisse da face do país, quem daria por isso, tal a omissão/demissão a que se assiste?
3. Fazer oposição quando o povo está feliz com o poder que o governa e os tempos correm de feição, é medonhamente difícil e, para as lideranças partidárias, nem falar. Ora, o actual momento eleitoral não está senão a ser amassado nesse clima, é esse o quadro destas autárquicas. Maus ventos para quem concorre contra a (suposta) felicidade, sorte para a geringonça. Seja como for — e esse é o meu ponto — ou a direita e o centro direita deitam contas à vida com tanto de seriedade quanto de desafio e empenho, ou… nada. Há um desinteresse nauseado face a zangas, amuos, invejas, vinganças partidárias passadas ou actuais, ambições novas ou já meio talhadas; um persistente embaraço face à ostensiva desunião do PSD e do CDS — e ao passa culpas entre ambos — uma perplexidade com o rumo das coisas. Ou a direita e o centro direita se procuram e reinventam ou o futuro não os merece, nem os abrigará. A tarefa, para além do gigantesco desafio que significa, não pode de resto ser mais sedutora: encontrar a forma e o argumento, o tom e o discurso, a atitude certa, a convicção indispensável para descodificar o mundo em que estamos e o país e em que vivemos. Sinalizando como podemos servi-los e o que neles podemos fazer melhor que outros.
Falar é fácil, dirão. Sim, é pelo menos mais fácil do que estar “lá” mas a responsabilidade cívica e política não é um rigoroso exclusivo dos partidos. Ser e fazer oposição não é apenas política “stricto sensu”, a cargo das famílias do PSD e do CDS. Cabe dentro da sociedade civil, compete a cada um que não se reveja ou rejeite o actual quadro político, sejam poucos ou muitos. Mas muitos ou poucos, quem são que não se ouvem, onde estão que não se vêem?
Ignoro se irá ou não começar um novo ciclo, nem percebo muito bem o que isso possa significar politicamente. Gostaria apenas que quem não é da geringonça fosse capaz de começar outro ciclo.
4. E, no entanto, matéria não falta. Escolho a mais gravosa, que é afinal um super tema: a total fragilidade do Estado, a sua flagrante incapacidade de resposta, a sua debilidade face às pequenas e às grandes coisas em que é chamado a ter o papel principal, prevenindo, acudindo e resolvendo. Conforme se viu, mas extraordinariamente se continua a ver. Todos os dias. Outra escolha? A irresponsabilidade de alguns governantes atolados numa recusa opaca em mudar de comportamento, prestar contas, explicar. Respeitando os portugueses, seus eleitores ou não. E não é com sucessivos e obsessivos “pedidos de demissão” que ficaremos mais esclarecidos, nem descansados, inútil ilusão.
Há mais questões graves como por exemplo a inconstância leve do Presidente da República para com as Forças Armadas que não é aliás de agora mas agora se viu melhor a propósito de um relatório onde o Presidente foi ambíguo e não podia.
E já agora, a própria leveza de actuação de Marcelo. Sim, sim. Tema obviamente merecedor de análise na revisão de um cargo que já leva muito tempo. Para que tem ele contribuído por detrás dessa coisa subitamente guindada a valor supremo que é a “proximidade”com açúcar e afecto? Ouviu-se a sua preocupação com o que se passa na Avenida 5 de Outubro onde, à custa do aluno e com afã e afinco se dá cabo de um sistema educativo que começava a resultar e a provar que resultava? Com o sobressaltado funcionamento do Serviço Nacional de Saúde? Com o galopante endividamento? Com a festa do crédito?
5. O guião já está escrito: no dia 1 à noite a geringonça inchará, a media amaciará o CDS (para melhor insultar o PSD), o carrossel começara a girar com palpites, infindáveis narrativas e claro, ajustes de contas, em directo e ao vivo. A intriga fervilhará. Tudo tão previsível sim, mas tudo tão pobrezinho. (E pensar em como ficou a Alemanha, como está a América, como estará a União Europeia, como poderá vir a estar a Coreia do Norte. Por exemplo).
Mas nos nossos écrãs estarão os do costume e certamente que o ventríloquo de Belém. Sempre agilmente prestimoso no serviço e no recado também lá deve estar. Com recados e serviço.
E depois? Depois, nada. Seguir com a vida em frente (de preferência sem a companhia do ventríloquo) à espera que alguém acorde. Ou melhor, que alguém queira acordar.
6. Pequena nota final: que me lembre desde 1974, desde que houve jornais e jornalistas entregues a si mesmos e não ao lápis azul da censura que não me ocorre espectáculo mais grotesco e simultaneamente mais obsceno do que a cobertura ou o acompanhamento da campanha autárquica do PSD, sobretudo em Lisboa. Grosseria, acinte, agressividade, arrogância. Um julgamento com a acusação implícita, e pode dizer-se que já vi tudo (e me lembro de tudo). É raríssimo utilizar o adjectivo “obsceno”, que aliás detesto. Infelizmente não há outro que melhor espelhe o tom inquisitorial praticado para com Pedro Passos Coelho e Teresa Leal Coelho.
Sem sombra de exagero, uma vergonha e uma indecência.